Crítica Literária, Literatura infantojuvenil,
Os relevos acidentados das emoções
Se em seus contos adultos Clarice Lispector tratou a infância com dureza, nos livros infantis ela buscou criar um ambiente acolhedor
01out2022 | Edição #62Em As crianças de Clarice, Mell Brites apresenta uma original perspectiva sobre o tema na obra da consagrada escritora “que explora os relevos acidentados das emoções, as castas e despovoadas planícies da incerteza, os caminhos tortuosos da razão”. Muitas abordagens já foram utilizadas em ensaios sobre Clarice, que a academia abraçou há décadas; no entanto, Brites propõe um caminho pouco explorado. Ela investiga pontes entre textos publicados na última década da prolífica produção da autora e sua longínqua infância no Recife, descrita em crônicas e raríssimos depoimentos. O simples espelho entreposto a meio caminho entre produção literária e aspectos vividos por Clarice é uma armadilha da qual Brites engenhosamente escapa. O sutil aproximar, porém, entre obra e experiência pessoal enriquece a compreensão de aspectos da produção clariciana, podendo funcionar como produtiva chave de leitura aos que se aventuram a adentrar o denso terreno do trabalho de Clarice.
A partir de uma reflexão do biógrafo Benjamin Moser, que afirma que quanto mais próxima do final da vida mais Clarice foi assaltada por lembranças da infância, Brites nos diz: “Essas obras trazem a infância para o primeiro plano da narrativa e apontam para uma tentativa de aproximação de Clarice com sua própria origem e também, como veremos, com o que há de mais visceral na existência”. Essa busca por uma origem remeteu-me à notável crônica “A geleia viva como placenta”, publicada no Jornal do Brasil em janeiro de 1972 e depois no livro A descoberta do mundo. A narradora, em primeira pessoa — que por se tratar de uma crônica de jornal se imagina bastante colada à autora —, revela um sonho assustador, no qual uma massa amorfa, uma geleia, talvez uma placenta, se movimenta pelo apartamento: “Quando a olhei, nela vi espelhado meu próprio rosto mexendo-se lento na sua vida. Minha deformação essencial”.
As crianças de Clarice se divide em duas seções: a Parte i aborda quatro contos escritos para adultos (“Os desastres de Sofia”, “Restos de Carnaval”, “Cem anos de perdão” e “Felicidade clandestina”), e a Parte ii, cinco livros para o público infantil (A mulher que matou os peixes, O mistério do coelho pensante, A vida íntima de Laura, Quase de verdade e Como nasceram as estrelas). Na primeira parte, é ressaltada a porção de sofrimento e privação das personagens: uma infância desafortunada, porém com perspectivas de efusividade diante da revelação de certo despertar da pré-puberdade. Brites defende que, além da descoberta da sexualidade, os momentos de êxtase vivenciados pelas personagens referem-se à descoberta da própria escrita.
Em “Restos de Carnaval” surge a imagem da rosa (tão reiteradamente explorada por Clarice), a menina em um desabrochar diante do olhar de um rapazinho de doze anos (a protagonista tem oito), tentando redimir as mazelas vividas num Carnaval desastroso, que seria só seu, porém a urgência da mãe doente a impediu de plenamente vivenciar o acontecimento de especial importância, por ser culturalmente relevante para a cidade do Recife, onde vivia, além da satisfação pessoal arquitetada por meses seguidos. A relação com as memórias da infância e com a cidade estão presentes em textos diversos de Clarice.
Nos livros infantis, há uma tentativa de Clarice de cumpliciar-se com a criança em sua plenitude
Brites explora o conceito lacaniano do Outro na chave psicanalítica de Humberto Moacir de Oliveira, ressaltando que a constituição do sujeito se faz necessariamente pela relação com a alteridade: o espelho afetivo que nos permite sorrir, pela perspectiva do que se chama, em muitas culturas, de amor: “A Rosa da fantasia era, enfim, o que permitia que a sua face mulher desabrochasse, e o menino é quem a reconhece e assim faz com que ela consiga se ver mulher, dotada de sua própria sexualidade e vontades”. Em “Cem anos de perdão”, surge também a imagem da rosa (e a concretude de adentrar um jardim alheio para surrupiá-la). A autora faz importante reflexão sobre os contrastes, numa sociedade desigual, em relação ao espaço de dentro, do aconchego, e do espaço de fora, do desamparo.
Cumplicidade
Na segunda parte, Brites ressalta uma mudança de postura: enquanto nos contos adultos as narradoras rememoram a infância em posição distanciada, nos livros infantis há “uma tentativa de cumpliciar-se com a criança em sua plenitude, configurando um mergulho mais profundo em sua origem”. Se na primeira parte há “imagens amargas e duras”, na segunda há “um ambiente ficcional acolhedor”. Para Brites, Clarice estaria oferecendo ao público jovem uma atmosfera que não usufruiu em sua própria infância. Ela menciona as ideias de Rosana Kohl Bines, relativas à recorrência à infância quando não conseguimos dar conta da realidade vivenciada. Brites relembra a icônica entrevista dada por Clarice, em 1977, a Júlio Lerner, em que diz que dialogar com o público infantil é fácil; a conversa com o público adulto é que é complicada.
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Talvez a reconciliação da Clarice autora com a Clarice menina tenha sido mais bem-sucedida que com a Clarice adulta. E talvez o deslumbramento de seus filhos diante das histórias inventadas e contadas pela mãe e o vislumbrar longínquo da menina, no Recife, com olhos refulgindo, o brilho de contentamento diante da literatura, permeiem a trajetória de seus livros infantis. As crianças de Clarice nos mostra, portanto, um entendimento minucioso e enriquecedor de alguns aspectos da obra de Clarice que poucos tangenciaram. E vem como um importante acréscimo à multifacetada crítica que se desenha nos enredamentos e emaranhados do avesso do tapete que é a obra de Clarice. Isolando fios, desmembrando cores, desvendando enigmas.
Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social
Matéria publicada na edição impressa #62 em julho de 2022.
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