Literatura infantojuvenil,

O silêncio dos afogados

Livro une artistas da palavra e da imagem em torno de um tema de máxima relevância para a América Latina: o horror da ditadura

16dez2022 | Edição #65

“Não me importava ser tão exata na escrita. O que queria era plasmar o medo.” Assim a autora argentina María Teresa Andruetto define uma de suas intenções narrativas ao escrever Os afogados. O livro une artistas da palavra e da imagem em torno de um tema de máxima relevância para a história da América Latina: o horror da ditadura. Em tempos turvos em que se lê pedidos de volta à ditadura em manifestações de rua, a publicação de Os afogados revela compromisso político com o jovem leitor e com a memória de acontecimentos históricos que não podem ser distorcidos, muito menos apagados.

Abre o livro uma sequência de imagens desenhadas em grafite. Acompanhamos um casal de jovens, depois adultos, em uma praia, retratados em dois tempos que se diferenciam pela tonalidade da cor, no fundo das páginas. Nas cenas da adolescência vemos uma praia habitada por pessoas descontraídas e o casal apaixonado correndo de mãos dadas, em busca de privacidade. Nas cenas da vida adulta, a mesma casa abandonada que antes servira de refúgio abriga agora o casal e o filho de colo. Eles têm o semblante tenso e triste. Ainda nesta sequência inicial podemos observar, em uma das páginas em preto e branco, uma mancha na areia da praia, um pouco à frente de onde caminham o casal e a criança. Uma mancha escura, indefinida, incômoda. Nenhuma menção a ela no texto. O “agitado mar da história”, de Maiakóvski, levanta-se como sombra nesta cena.

Em página com fundo vermelho destaca-se a primeira frase do texto de Andruetto, tão impactante quanto as imagens que o precedem: “Vinham caminhando desde o mais profundo da noite”. De que profunda noite surge esse casal, novamente em fuga? Do que fogem, agora? Por que não podem ser vistos e temem que o choro da criança desperte a atenção da vizinhança? Não há respostas imediatas para estas e tantas outras dúvidas que podem intrigar o leitor. 

Como sobreviver ao medo? Como prosseguir esbarrando em rastros de morte por todo lado?

As perguntas impregnadas no texto, em consonância com as lacunas deixadas pelas imagens iniciais, são de outra ordem: como sobreviver ao medo? Como prosseguir, esbarrando em rastros de morte por todo lado, até mesmo nos sonhos? Estas bem poderiam ser perguntas feitas por qualquer brasileiro nos útlimos anos. 

As narrativas criadas por Andruetto e Rabanal, ainda que possam ser lidas em tom de denúncia, primam pela delicadeza e pela força estética. Estão no livro os chamados “voos da morte”, nos quais milhares de pessoas foram lançadas ao mar, ainda vivas, durante os anos da ditadura argentina. Estão lá as avós da Plaza de Mayo, as famílias despedaçadas por torturas realizadas na frente das crianças e as mães que perderam seus filhos em chacinas e operações militares. Manchas em um passado não tão remoto assim.

‘Foi duro, muito duro’

Originalmente editado por María Osorio, à frente da colombiana Babel Libros, o livro integra a coleção Fronteira Ilustrada, representada no Brasil pela parceria entre o Instituto Emília (SP) e a editora Solisluna (BA). A live de lançamento do livro, realizada em fevereiro de 2022, reuniu a autora, vencedora do prêmio Hans Christian Andersen em 2012, a tradutora Marina Colasanti e o ilustrador Daniel Rabanal, preso político durante a ditadura argentina. Na ocasião, ele contou que considera Os afogados um dos livros mais importantes que já fez. “Foi duro, muito duro. Depois de cada ilustração, em especial as da segunda parte do livro, necessitava de um respiro longo para prosseguir”, disse Rabanal, referindo-se à sequência de imagens sem texto que fecha o livro, logo depois das últimas frases: “Tinham cortado a minha língua, por isso não podia falar, mas queria te dizer… te dizer… Te dizer… Que eles não são afogados”. Quem diz isso é a mulher, narrando um pesadelo.

Como observou Marina Colasanti durante o lançamento do livro, “o texto nomeia apenas o personagem masculino. A mulher não tem nome. Mesmo assim, é ela que nomeia o que se passa”. É a mulher que consegue dizer que aqueles corpos encontrados na costa não são afogados. É de sua boca que ouvimos, ainda que não diga literalmente, que são corpos assassinados pela ditadura militar argentina. Sem nome, essa mulher representa a complexidade da luta política feminina de toda uma geração latino-americana.
Se no texto os não ditos transbordam sentidos, nas imagens finais, que deixaram sem fôlego o próprio artista que as criou, o realismo sombreado a grafite desata nós. Pontos de vista transversais narram o indizível a partir do menor, do que está à margem, desterritorializado. As camadas narrativas emergem atravessando a história do desaparecimento forçado, da violência de Estado e centrando-se nos detalhes da vida — e da dor — de quem sobrevive.

Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Cristiane Tavares

É crítica literária, coordena a pós-graduação Literatura para crianças e jovens no Instituto Vera Cruz (SP).

Matéria publicada na edição impressa #65 em outubro de 2022.