Literatura infantojuvenil,

Não é fácil ser Robinson Crusoé

Em narrativa autobiográfica, Peter Sís faz uma ode à fantasia infantil, fonte inesgotável de criação

01jun2020 | Edição #34 jun.2020

Peter Sís, autor checo, vencedor do Prêmio Hans Christian Andersen de Ilustração (2012), dedica esse livro à mãe, Alenka. A história, narrada em primeira pessoa por uma criança, é inspirada em acontecimentos de sua infância, o que ficamos sabendo na nota do autor nas páginas finais. Em uma festa à fantasia da escola, a mãe sugere que o protagonista se vista de Robinson Crusoé, herói de sua narrativa preferida, e costura um traje inusitado, usando um collant de sua irmã, um colete, uma peruca, pequenos tapetes e pelúcia. Fantasias artesanais estão presentes no livro desde as ilustrações da guarda: tem pirata, crocodilo, sereia, cavaleiro, bailarina, anjo, super-herói. A fantasia como categoria da imaginação que alimenta as brincadeiras infantis também se faz presente: o protagonista adora brincar de pirata com os amigos. Juntos, descobrem e dominam mares.

A relação entre fantasia e realidade é um importante eixo no livro. Mais do que referências diretas ao romance escrito por Daniel Defoe em 1719, Sís entrega ao leitor uma ode à imaginação infantil, fonte inesgotável de criação, como tantos filósofos já fizeram questão de notar. Para o francês Gaston Bachelard, por exemplo, “os poetas nos ajudam a reencontrar em nós essa infância viva, essa infância permanente, durável, imóvel. Ininterruptamente a imaginação reanima a memória, ilustra a memória”. 

Na festa, porém, a reação dos amigos é diferente da imaginada. Vestidas de pirata, as crianças riem de sua fantasia e ele não se sente forte ou corajoso como seu herói. Só deseja ir embora correndo. Em casa, triste, devaneia, em silêncio, na solidão do quarto, assim como Max, personagem de Onde vivem os monstros, clássico infantil de Maurice Sendak. Em ambas as obras, é fundamental observar os detalhes das ilustrações. Em Robinson, nesse momento da narrativa, a luminária destaca um livro com o título Robinson, provavelmente o de Defoe, na cabeceira. A cabeça do menino gira e ele, então, sente-se perdido e à deriva. Seus pensamentos navegam por mares já visitados em suas brincadeiras. Dessa vez, a embarcação que o leva tem como velas as páginas de um livro (novamente, detalhe escondido nas imagens). O vento sopra, folheia e o carrega para uma ilha deserta. Agora, ele finalmente pode ser Robinson. 

Cartografias peculiares

O leitor vê as imagens do alto, num sobrevoo. Perspectivas múltiplas e cartografias peculiares são marcas de estilo nos desenhos de Sís, como atestam seus livros A conferência dos pássaros, O piloto e o Pequeno Príncipe e O muro (todos da Companhia das Letrinhas). A chegada do menino à ilha, ainda de pijama e na companhia de seu coelhinho de pelúcia, é marcada pela alteração das cores. Dando lugar aos tons mais sóbrios da sequência inicial, surge uma paisagem exuberante, ilustrada em tons quentes. Sís pesquisou fauna e flora da Martinica para criar as imagens do livro. Assim como o herói de Defoe, o garoto também se vê sozinho em uma ilha, em busca de água e comida, e constrói um abrigo para se proteger. Descobre, então, como fazer roupas melhores para viver ali.  É quando seu pijama é substituído pela veste costurada pela mãe. Ele se agiganta e ocupa todo o espaço da página, vestindo já não mais uma fantasia, mas uma roupa adequada ao novo lugar que habita. Assim vestido, trabalha arduamente, em companhia dos animais da ilha. Ele agora se sente forte e corajoso, como seu herói preferido, mas está sempre de olho nos piratas — ou estaria em busca de seus velhos amigos de infância? Eis que, finalmente, eles chegam. 

Quando os piratas atracam, só vemos suas sombras, e logo identificamos, apenas pela informação contida nas imagens, que se trata do quarteto de amigos da escola. O garoto fica em dúvida se vieram para brincar ou estragar tudo, certa tensão se instaura e as páginas voltam a ficar sombrias, mas tudo clareia quando percebe que vieram visitá-lo, saber se estava bem e conhecer mais sobre Robinson Crusoé. O leitor é levado de volta ao quarto do protagonista, agora mais iluminado e com novas vegetações no entorno. O menino fica feliz em rever os amigos que chegam sorridentes, vestindo fantasias muito parecidas com a que sua mãe tão carinhosamente havia costurado. Robinson continua na cabeceira, agora aberto, e o garoto e sua turma partem para uma nova aventura. 

Sís vê a solidão e a leitura como experiências capazes de criar vínculos duradouros de cumplicidade

Nas páginas finais, o leitor encontra a foto de Peter Sís com a roupa de Robinson Crusoé criada por sua mãe, com a qual venceu o concurso de fantasias da escola. Escrevendo em primeira pessoa, o autor nos avisa que, apesar da vitória, não se sentia assim tão confortável naquela fantasia que lhe dava coceiras, principalmente porque os amigos zombavam dele. Sís, assim como seu personagem, de fato passou dias com febre na cama depois do episódio do concurso escolar. Mas, por fim, ele ressalta a solidão e a leitura como experiências de fortalecimento pessoal, capazes de criar vínculos duradouros de cumplicidade.

Esse texto foi realizado com o apoio do Itaú Social.

Quem escreveu esse texto

Cristiane Tavares

É crítica literária, coordena a pós-graduação Literatura para crianças e jovens no Instituto Vera Cruz (SP).

Matéria publicada na edição impressa #34 jun.2020 em maio de 2020.