Literatura infantojuvenil,
Dar nome aos porcos
Reconto da história dos três porquinhos à moda de Guimarães Rosa expõe sem medo a realidade e os dramas das crianças
01fev2021 | Edição #42Saga, sagarana, tri, suíno: Sagatrissuinorana começa a brincadeira pelo nome e reconta, à moda roseana, a boa e velha história dos três porquinhos. Uma história que todo mundo sabe contar pra criança, que a gente chama de historinha, mas que de “inha” não tem nada. Enquanto constroem suas casas, os porquinhos tecem seu caminho de emancipação e, entre diversão, ameaça e medo, discutem conosco aquilo de que cada um precisa pra viver bem e o quanto a experiência de segurança é, também, uma experiência subjetiva.
No reconto de João Luiz Guimarães e Nelson Cruz, os três porquinhos recolocam essa discussão em termos muito atuais. Pra começar, não moram em uma floresta qualquer nem vivem em um tempo perdido. O endereço se trança com a palha do buriti do primeiro porquinho, com a paliçada de taquara verde e o mandacaru colhido na vereda de Matosinhos pelo porquinho do meio. O texto, entre desenho e letra, conduz o leitor ao cerrado, às Minas Gerais de Guimarães Rosa. É naquele verde imenso e colorido que os porquinhos fogem do lobo destruidor de moradas, procuram abrigo e se juntam em uma casa de tijolo, mais forte que o sopro do inimigo.
A saga do nosso tempo, porém, não acaba com o lobo no caldeirão e, por isso, desfaz a tentação do bem-estar simplista com o qual os adultos tentam cercar as crianças. É aqui que a velha e a nova história dos porquinhos se juntam e nos ajudam a pensar o nosso lugar na história.
Verdade da família
O reconto de Guimarães e Cruz chega poucos meses depois que a Secretaria de Alfabetização do Ministério da Educação (MEC) lançou o Conta Pra Mim, um programa que disponibiliza várias versões de clássicos da literatura para crianças, mas que, do jeito como são apresentados, apagam a dimensão do conflito, da dúvida e da escolha, dissolvem as malvadezas e o erotismo inerente a essas histórias e à experiência humana. Transformados em histórias de versão fechada e única, afirmam, a cada historinha (contada pra boi dormir) que todo conflito e todo risco se apagam diante de uma suposta “verdade da família”.
Tão deturpados quanto as suas finalidades, forçando a redução do mundo das crianças a uma fictícia vida familiar universalizada e sem conflito, as histórias moralizantes do Conta Pra Mim nem mesmo merecem o estatuto de reconto. O que elas contam é outra história, como formulou Rubens Valente recentemente aqui na revista dos livros.
A saga não acaba com o lobo no caldeirão e, por isso, desfaz a tentação do bem-estar simplista com o qual os adultos tentam cercar as crianças
Contar histórias para crianças é, entre muitas coisas, oferecer a elas espaço e recurso de elaboração da sua experiência; é pensar junto, conversar. Os contos de fada, especialmente, tocam em temas que apontam para aquilo a que se refere, desde Freud, como angústia de castração, essa marca da incompletude, da insuficiência diante do outro, ou mesmo do limite que se apresenta em toda vida humana.
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Ao apresentarem conflitos e tematizarem os dramas subjetivos vividos pelas crianças, os contos oferecem espaço e instrumento para a criança lidar com a vida e com a morte, com as separações e as perdas que não se pode evitar. Esse efeito que produzem no tecimento da subjetividade fez com que os contos de fada atravessassem a contingência do tempo histórico e se atualizassem como recurso para as crianças de cada época.
É por essa razão, também, que Sagatrissuinorana dá aula ao enfadonho Conta Pra Mim. Sem medo de nomear a realidade na qual as crianças já vivem, o reconto de João Luiz Guimarães e Nelson Cruz apresenta um predador poderoso, capaz de engolir lobo, porquinho, gente e a terra toda: na forma de uma gigantesca onda de lama, o homem humano é o lobo do lobo.
Ali, em Nonada, próximo de Liso do Sussuarão, a literatura cumpre a sua função de alargar o mundo já conhecido, coloca questões e enreda um bom começo de conversa com as crianças sobre a relação entre as demandas da civilização contemporânea e a possibilidade da vida. Se esse não for um assunto para tratar com quem tem mais chance de estar aqui no futuro, não será para ninguém.
Este texto foi feito com apoio do Itaú Social.
Matéria publicada na edição impressa #42 em janeiro de 2021.