Literatura infantojuvenil,

Bordar mundos e alinhavar linguagens

Feito para um projeto do Museu Palestino, livro de escritora e ilustradora argentina se desenrola em um tecido tradicional

30jun2023 | Edição #71

É levando um mapa, uma agulha grande, uma linha resistente e uma tesoura que Lila, a protagonista de A costura, sai em missão de acabar definitivamente com um sério problema da rotina: a perda de objetos. Por aí, o livro já começa a fazer sentido para todos nós e não apenas para os jovens leitores: quem não fica abalado com o sumiço constante de chaves, canetas, óculos, guarda-chuva?

Tramar muito bem os diálogos dos personagens com propostas imagéticas arrojadas, criando livros-álbum em que a força da palavra e da ilustração ficam muito bem equilibradas, é especialidade de Isol (nome artístico da argentina Marisol Misenta), autora de 24 livros, já traduzidos para 17 idiomas.

O bordado em ponto-cruz leva o leitor a viajar por aldeias com casas de telhados pontudos

Escritora e designer premiada, Isol aceitou o convite do Museu Palestino para integrar o projeto The History of Palestinian Art as Told by the Objects of Daily Life (História da arte palestina contada por objetos do cotidiano). Assim, A costura, literalmente, se desenrola sobre um tecido com os bordados tradicionais palestinos.

Usando o lado avesso e o direito da peça de pano, a autora faz do tecido o suporte para contar essa história: depois de levar uma bronca da mãe por perder coisas, Lila se justifica dizendo que os objetos somem porque caem em buracos, são tragados pelo Lado de Trás. Então, a garota tem uma grande ideia: vai sair e fechar todos esses buracos com agulha e linha, assim os objetos não terão como desaparecer. A protagonista sai à caça dos orifícios, costura um por um com esmero e sem ter noção das consequências. Imaginando que a missão foi cumprida, tem alguns minutos de alegria. Pouco depois, a cidade é envolvida por uma espessa névoa. O dia não amanhece, as pessoas não enxergam umas às outras, todos tossem, tudo fica como se estivessem trancados em uma casa sem luz, sem ar e sem som. Lila logo percebe que costurar os buracos pode não ter sido boa ideia e pode ter estragado a ligação entre o Lado da Frente e o Lado de Trás, entre o avesso e o direito, entre o mundo da realidade e o da fantasia, entre o tempo acordado e sono cheio de sonhos, entre o mundo das crianças e dos adultos.

Experiência tátil

Além do enredo, é amalgamando várias linguagens com precisão e graça que A costura — uma obra literária e gráfica — convida inclusive a uma experiência tátil, seja na capa, nas páginas com texturas de linho que abrem os capítulos ou nas páginas de guarda. O tecido palestino bordado em ponto-cruz (uma das técnicas mais antigas), leva o leitor a viajar por aldeias com casas de telhados pontudos, rios e árvores frutíferas. Há também o galo, o trigo e outros símbolos da cultura palestina, em que o bordado é valor e expressão da essência desse país formado por aldeias e campos férteis.

Vale lembrar que no tempo em que o bordado era apenas uma atividade doméstica e feminina, a Palestina era uma grande área geográfica contínua, que atualmente corresponde ao Estado da Palestina, Estado de Israel, Cisjordânia e Faixa de Gaza. Desde 1947, com o Plano de Partilha da Palestina, criou-se ali dois estados independentes, um árabe e outro judeu — o que gerou e continua gerando conflitos e deslocamentos constantes. Nesse contexto, a tradição do bordado palestino foi usada em programas de geração de renda para mulheres refugiadas nos países vizinhos e na Europa e também serviu para atenuar a pena de presos políticos palestinos detidos nos confrontos.

Portanto, o arcaico ato de bordar ultrapassa os limites étnicos e domésticos e passa a ser uma forma de micropolítica de resistência, já que os desenhos carregam a identidade da cultura palestina. Esta é uma outra camada que podemos começar a desvendar nas páginas de A costura.

Quem escreveu esse texto

Liliane Oraggio

É terapeuta corporalista, jornalista e autora de Bordas de seda (Quelônio, 2023) e Ouço vozes (Oraggio/Colmeia, 2017).

Matéria publicada na edição impressa #71 em julho de 2023.