Literatura infantojuvenil,
A vida secreta dos gnomos
Misto de conto maravilhoso e ficção científica, livro afirma que seres existem — e devem ser levados a sério
30set2023 | Edição #74Uma interessante mescla de gêneros literários, que começa como um estudo acadêmico, em tom de divulgação científica, sobre o gnomo, criatura mitológica de origem escandinava. Em um resumo rápido, Gnomos, criação conjunta do ilustrador Rien Poortlev com o amigo cientista Wil Huygen, que fez sucesso nos anos 80 e ganha uma belíssima nova edição pela DarkSide, com tradução do holandês de Débora Isidoro, pode ser definido assim. Na fantasia da dupla, eles não só existem como devem ser levados a sério.
O tom circunspecto diverte, pois fala dos seres fantásticos com o mesmo rigor teórico dispensado aos reais. Assim, ficamos sabendo mais sobre essas criaturas inteligentes e benévolas, sua cultura e sociedade, a interação com outras espécies fantásticas (como os trolls, de quem são inimigos naturais) e as mais mundanas, como humanos, lebres, aves e camundongos.
Gnomos, criação conjunta do ilustrador Rien Poortlev com o amigo cientista Wil Huygen, fez sucesso nos anos 80 e ganha uma belíssima nova edição pela DarkSide, com tradução do holandês de Débora Isidoro
O realismo aparente desse “estudo”, que ocupa 159 das 224 páginas da obra ricamente ilustrada, e cujos detalhes o olho tem prazer em desvendar, é reforçado de vários modos. O principal é na forma de apresentar as muitas habilidades dos gnomos: carpintaria, tecelagem, construção e até medicina são ao mesmo tempo familiares e ressignificadas pelas mãos competentes dessas simpáticas criaturinhas.
Para quem entende o básico dessas atividades e de como eram realizadas por humanos na Idade Média e Moderna, é um prato cheio perceber quais detalhes o autor adaptou para os gnomos, seja pela diferença de tamanho — já que em geral não passam de quinze centímetros —, seja pela inclusão de aspectos mágicos.
O fato de Huygen ser médico e conhecer outras ciências também aparece na narrativa: ao discorrer, por exemplo, sobre a fisiologia dos gnomos, seus sentidos e sua forma de prever o tempo — analisando o nível de abertura dos estômatos das folhas das plantas!
Conservadores
Publicado originalmente em 1977, Gnomos se mostra uma criativa mistura do conto maravilhoso com um tipo disfarçado de ficção científica.
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Por isso mesmo, a primeira parte da obra pode não ser uma leitura fluida para o público mais jovem, embora, na companhia de um adulto, possa ser instigante. E, devo dizer, para os mais conservadores. Infelizmente, apesar de toda a criatividade, o autor, a partir das origens folclóricas dos gnomos, se pauta em sociedades mais antigas e nos preconceitos que ainda não se desfizeram de todo no século 21: há uma divisão sexual do trabalho. O gnomo homem é o provedor, trabalha fora e vive grandes aventuras pelo mundo antes de procurar uma esposa, enquanto a mulher gnomo fica em casa, cuida dos filhos e ocupa-se de trabalhos domésticos. Sua vida social se restringe às vizinhas e aos animais que circulam pelos túneis próximos ao seu lar subterrâneo, no caso dos que vivem na floresta.
O tom diverte, pois fala dos seres fantásticos com o mesmo rigor teórico dispensado aos reais
A construção da sociedade dos gnomos é também um pouco incongruente: num primeiro momento, afirma-se não haver classes, distinção entre ricos e pobres, e o rei é eleito por seu povo. Mais adiante, no entanto, menciona-se a “nobreza”, e os gnomos eleitos reis são sempre do tipo “doméstico”, próximos dos humanos, que os tornam mais instruídos. Ou seja, embora se afirme que em tudo os gnomos são melhores que os humanos (em termos físicos ou morais), os mais dignos de governar são aqueles “melhorados” pelo convívio com a humanidade. Humanos que, aliás, são bastante criticados no último capítulo, que narra a interação dos autores com um dos gnomos que lhes prestou “consultoria”.
A relação entre gnomos e animais é descrita em detalhes nas “lendas dos gnomos”, na parte final do livro. É interessante vê-los como verdadeiros amigos da natureza: vegetarianos que só comem ovos não fecundados de aves, que trocam por seus serviços. Há uma relação de amigável permuta. Essa conexão com o habitat e suas diversas populações animais aparece de maneira positiva ao longo do livro, mas é desmentida por frases curtas, fáceis de ignorar: o gnomo de jardim, “por ser bem instruído” (ou seja, próximo dos humanos) se sente deslocado na floresta. Mas há aí um vestígio da velha oposição entre natureza e cultura, na qual a última aparece como superior.
Gnomos traz também duas partituras de canções dos seres mágicos, contribuindo para o jeito de estudo etnográfico, acessível a crianças mais crescidas. As muitas aquarelas espalhadas nas páginas remetem às lendas, aos contos de fadas e às fábulas, e o texto “acadêmico”, aos livros de curiosidades pelos quais tantas crianças se apaixonam e que frequentemente despertam as primeiras faíscas para uma futura profissão. O fato de haver tanto de história e ciência em meio à ficção fantástica também cria um desejo de descobrir: quanto disso é verdade?
Matéria publicada na edição impressa #74 em setembro de 2023.
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