Literatura infantojuvenil, Música,

A rosa de ouro do samba

Biografia narra a trajetória de Clementina de Jesus, neta de escravizados que despontou como sambista luminar aos 63 anos de idade

01out2021 | Edição #50

Nossos ancestrais são aqueles que vivem através de nós. Recontar suas histórias é fundamental não só para mantê-los vivos, como também para ajudar a entender o que nos forma hoje. Levar esse conhecimento a novas gerações é dever civilizatório. Nesse sentido, a coleção Brasileirinhos, da editora Paulus, cumpre missão essencial ao apresentar de maneira lúdica a trajetória de figuras fundamentais na formação cultural do nosso país, como Carlos Drummond de Andrade, Tarsila do Amaral e Paulo Freire, que ganham as páginas de maneira delicada e didática. Além de enumerarem os grandes feitos e obras dos homenageados, os livros buscam criar uma ligação direta com os pequenos leitores ao abordar aspectos do cotidiano.

Dos quinze nomes já homenageados pela coleção, Clementina de Jesus (1901-87) é a única mulher negra. Em Cantar era seu sonho, o texto de Lúcia Fidalgo e as ilustrações de Robson Araújo narram o percurso da herdeira da diáspora africana que transmitiu por meio da voz a sua ancestralidade. A cantora evocava melhor do que qualquer um aqueles que a precederam. Descendente direta de escravizados, tornou-se um potente elo entre a cultura brasileira e a do continente africano.

A trajetória da intérprete é exemplo de como a ancestralidade nos forma e precisa ser revelada. Ao ler sobre a filha da parteira Amélia e do violeiro e mestre de capoeira Paulo Batista, o leitor aprende que ela nasceu na cidade fluminense de Valença, em uma região conhecida como Vale do Café — um polo da presença afro-brasileira por causa do fluxo de ex-escravizados que trabalhavam forçadamente na agricultura das grandes fazendas do local.
 


 

Aos oito anos, Quelé, como era conhecida, mudou-se com a família do sul fluminense para a capital e ali encontrou sua gente, sua cultura e seu Carnaval. Nas primeiras páginas, vemos no texto de Lúcia Fidalgo como a menina absorve a música de suas origens, levando na memória os jongos, lundus e cantigas e absorvendo as formas de re-existência negra no território onde nasceu. A música faz parte do cotidiano da pequena cantora como algo natural e intrínseco à lida diária. É nesse contexto que se lê uma bela fala da narrativa: “Não é só de trabalho que é feito o meu tempo”. A frase é simbólica para entender como a vida de Clementina é atravessada pelo machismo e pelo racismo que estruturam a nossa sociedade.

Reconhecimento

Como uma voz tão potente permaneceu longe dos holofotes por tanto tempo? Foi só depois de uma vida de tarefas domésticas e de trabalhos subvalorizados que Clementina de Jesus conseguiu se firmar como cantora. O reconhecimento nacional veio apenas aos 63 anos, quando participou do espetáculo Rosa de ouro, que passou por algumas cidades brasileiras e virou disco pela Odeon. Clementina participou a convite do produtor e compositor Herminio Bello de Carvalho, que a havia visto cantar em uma taberna na Glória (frequentada, aliás, por nomes como Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes, Pixinguinha e Noel Rosa).

Seu itinerário artístico faz refletir sobre como as desigualdades sociais são estruturais. Para uma mulher como Clementina, não cabia cantar antes de servir — para a nossa sorte, no entanto, ela jamais abandonou o seu sonho.

A joia rara levou tempo para ser lapidada, mas, mesmo que o Brasil tenha demorado a conhecer a sua voz, Clementina era figura ativa da cultura popular dos lugares por onde passou, caso do bairro de Oswaldo Cruz e do morro de Mangueira, locais onde residiu e berços das principais escolas de samba cariocas.

As ilustrações de Robson Araújo ajudam a entender com mais clareza o elo entre a artista e as muitas Áfricas a que deu voz, em uma linguagem que se entrosa bem com o texto e desperta a imaginação do leitor. Outro auxílio fundamental da narrativa é a presença das letras de canções que fizeram parte de seu repertório. A artista interpretou sambas das mais diferentes épocas e resgatou cantigas populares e preces das religiões afro-brasileiras, criando um acervo complexo que é fruto de suas origens e também do rico caldeirão cultural que vivenciou.
 


 

Resumir 86 anos de percurso de vida não é tarefa fácil, ainda mais de uma personagem cheia de enredamentos. Retornar à história de Clementina de Jesus é revelar a multiplicidade de rumos que forja nossa formação cultural. É fazer pulsar uma voz ancestral que precisa ser ecoada. Assim como Clementina é símbolo de um elo entre o horror da escravidão e a beleza da pulsante cultura negra brasileira, o livro de Fidalgo e Araújo se coloca como uma conexão possível entre a artista e as novas gerações, fazendo-a permanecer viva. Quelé é nossa ancestral. Ao nos conectarmos com ela, estamos  também nos conectando com tantos mais que existiram antes de nós.

Este texto foi feito com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Leonardo Antan

Curador de arte, publicou Deixa rolar (Rico Editora).

Matéria publicada na edição impressa #50 em agosto de 2021.