Literatura estrangeira,
O jogo imita a vida
Narrativa que irrompe do tabuleiro é uma das mais autênticas de Nobel de Literatura japonês
01ago2019 | Edição #25 ago.2019Se uma das marcas da literatura do século 20 é a solidão das personagens, o jogo se encaixa como um dos principais companheiros dos anti-heróis isolados, com problemas de comunicação e sem nenhum tipo de adaptabilidade maior com a sociedade que os rodeia. Não é à toa, portanto, que um dos escritores que mais ajudaram a formar a modernidade literária, Fiódor Dostoiévski, escreva e publique quase ao mesmo tempo o texto que vai servir de base para boa parte das personagens dos grandes clássicos modernistas e outro que parece quase um complemento, trazendo para um ambiente um pouco mais público uma personalidade que se cria nos fossos.
Memórias do subsolo e Um jogador, portanto, podem ser colocados lado a lado como representantes de um esforço por criar características muito marcantes para um certo tipo de ser humano surgido ou submerso em uma sociedade sufocante e uma atividade que abrigaria todo o seu egocentrismo, a sua fobia social e a sua irascibilidade.
O jogo se encaixa como um dos principais companheiros dos anti-heróis isolados
Por trás do silêncio aparentemente concentrado de qualquer salão de jogos, o que existe é o tremor de pessoas obstinadas pelo próprio lance, alheias a tudo que fuja do tabuleiro e interessadas exclusivamente em vencer seu adversário, quando não em massacrá-lo. O século 20 produziu dois romances notáveis em que o jogo de xadrez é o centro.
Em A defesa, de Vladimir Nabokov, por trás da aparente e enganosa racionalidade da elegância dos mestres está a turbulência de mentes incapazes de viver fora das 64 casas do tabuleiro. Já na notável Novela de xadrez, de Stefan Zweig, o mundo explode em conflitos armados bem mais complexos do que o rei fugindo do ataque de dois cavalos, uma torre e a malta de peões que costumam assombrar os enxadristas.
Muito tradicional no Japão, outro jogo de tabuleiro inspira um dos principais romances do prêmio Nobel Yasunari Kawabata. Publicado em 1954, O mestre de go se passa durante a última partida da vida de um de seus maiores jogadores e serve para confirmar a perícia técnica de seu autor. A narrativa inteira se constrói ardilosamente, como se fosse o jogo que ela reproduz.
No go, jogado em um tabuleiro quadriculado, o objetivo é conquistar mais espaço do que o adversário, construindo uma espécie de cerca no próprio território, ao mesmo tempo que as peças do oponente podem ser retiradas se perderem as casas adjacentes. Trata-se, portanto, de um jogo de aproximação e delimitação.
Mais Lidas
O romance de Kawabata se constrói exatamente dessa forma. Primeiramente e com muita lentidão, somos apresentados às personagens principais, sobretudo um senhor idoso que, por meio de enorme talento e esforço, se tornou um dos maiores jogadores de go do Japão e, portanto, do mundo. Naquela que será sua partida de despedida, ele enfrenta um adversário mais jovem e menos ranqueado, ainda que de força de jogo descomunal.
Mesmo o narrador vai se revelando aos poucos: trata-se de um jornalista especializado no jogo, autor de algumas matérias importantes sobre o mestre e que, por isso mesmo, tem certa intimidade com ele e com sua família. Apenas depois de que tudo acaba, o narrador percebe que escreverá uma reportagem do subsolo: “Estive recluso na hospedaria junto com os jogadores profissionais de go que estiveram lá ‘confinados’ e, agora no ônibus de volta à minha cidade, vendo essa decoração, sentia-me liberto, como se tivesse acabado de sair de uma caverna escura”.
Arte e realidade
O recurso da aproximação vai se dando conforme o jogo avança. A propósito, diversas fases da partida são reproduzidas em diagramas ao longo do livro. Conforme se aproxima da personagem principal, o narrador constrói o modelo dostoievskiano: “[…] talvez por ser o rosto de uma pessoa que chegara a um final trágico após dedicar toda a sua vida a uma única arte, mas que perdera muito da parte valiosa da realidade”. Sabemos, por fim, que o mestre é tão obstinado que, mesmo em meio a um grave problema de saúde, não interrompe a partida. Afinal de contas, o jogo é a vida dele.
Não é apenas a narrativa que brota do tabuleiro. As próprias personagens se reduzem. Conforme se aproxima da morte, o mestre se torna tão franzino que praticamente só lhe resta a cabeça. Enfim, é nela que o jogo se passa.
Em todos os “romances de jogador” há um tipo de moral embutida, que acaba submergindo do tabuleiro. Em O mestre de go, isso é evidente: o mestre, apesar de sua enorme superioridade técnica, perde porque acaba fazendo um único lance menos cuidadoso. É como se toda a obstinação e a entrega acabassem sendo punidas. Qualquer outra saída seria um erro formal, já que jogos não permitem ambiguidades e costumam punir quem se entrega a eles.
Conforme se aproxima da morte, o mestre se torna tão franzino que praticamente só lhe resta a cabeça. Enfim, é nela que o jogo se passa
O romance de Kawabata ainda faz alguns lances em direção a duas das grandes questões presentes na obra do escritor japonês: o embate entre tradição e progresso e o custo que a mudança pode trazer, ainda que, inexoravelmente, quem resista a ela seja punido. Adaptado à velha maneira de jogar go, o mestre não consegue se amoldar às mudanças e sucumbe. E, quando um tabuleiro vira um território maior, os jogadores se tornam bem mais representativos do que meras figuras deste ou daquele grupo. Juntando tudo isso, a literatura se fortalece a ponto de ultrapassar o papel da advertência, da constatação e da representação para se tornar parte da realidade. Os grandes escritores criam trechos da nossa vida.
Nota do editor
O livro O mestre de go foi o livro do mês de julho no clube de leitura da Quatro Cinco Um em parceria com a Japan House São Paulo, com a presença do escritor Ricardo Lísias. Saiba mais
sobre esse e os próximos encontros em nosso site: quatrocincoum.com.br.
Matéria publicada na edição impressa #25 ago.2019 em julho de 2019.
Porque você leu Literatura estrangeira
Leia trecho de ‘Filosofia e poesia’, de María Zambrano
Primeira mulher a ganhar o prêmio Cervantes, a escritora e filósofa espanhola tem seu primeiro livro publicado no Brasil
MARÇO, 2021