Literatura em língua francesa,

Novas poéticas

Clássico dos estudos decoloniais e tema da Bienal de Arte de São Paulo, livro de Édouard Glissant finalmente é traduzido no Brasil

01out2021 | Edição #50

Tudo começa no abismo. Acorrentado a uma barca escura e lançado ao desconhecido do mar, desterritorializado e preso a outra terra, subjugado pela força física, pela violência do discurso, pela memória que desvanece: a descrição da experiência do escravizado africano traficado às Américas inaugura de modo profundamente poético a obra-prima de um dos maiores pensadores do Caribe. Mas permite também a Édouard Glissant insinuar uma alegoria. Pois os conceitos — visões de mundo oriundas do mesmo processo, instrumentos de dominação e poder — são grilhões igualmente poderosos. Séculos depois, a escravidão segue nas palavras.

Poética da Relação não é um livro fácil. Não traz uma receita para refundar o pensamento ocidental, nem uma teoria decolonial instrumentalizável pronta para uso. É um ensaio filosófico de vigor literário que se nutre da história e da cultura do povo caribenho para oferecer um olhar novo sobre o que é viver em sociedade. Ler Glissant é navegar pelas águas revoltas de um pensamento complexo, não linear, indomável e aberto para o mundo. Um mergulho em outro tipo de abismo.

Com afiada erudição, os tentáculos de seu pensamento tateiam o cânone que desembarca no Caribe junto com a opressão do outro, refletindo sobre os mitos fundadores e as narrativas épicas que alicerçam o pensamento do Ocidente, baseados no anseio pela totalidade. Ele passa por Cristo e Édipo, Shakespeare e Hegel, Baudelaire e Todorov, filiação ao clã e viagens dos colonizadores e pela falsa dualidade do eu versus o outro — é desmistificando os fundamentos e difratando os sentidos que traz à tona a Relação.

Glissant põe Faulkner, Segalen e Saint-John Perse em perspectiva; ouve poemas e provérbios dos contadores de história caribenhos à luz dos sedimentos de outras culturas; aproxima o oral e o escrito, a opressão e a modernidade — e das plantations desembocam, em suas páginas, o blues, o reggae, Derek Walcott e a própria língua crioula que é a base dessa cultura “barroca”, desse “estar-no-mundo” que desafia a lógica ocidental.

Se “conformam um viés crítico que contesta as amarras do colonialismo e ressalta o protagonismo do sujeito afrodiaspórico na análise de sua própria experiência estética e cultural”, como explicam Ana Kiffer e Edimilson de Almeida Pereira no prefácio do volume, os livros de Glissant não o fazem de modo didático. Glissant pariu oito romances, catorze ensaios, nove livros de poemas e uma peça de teatro — e tudo se entremeia num modo de ver e viver o mundo que passa longe da esquematização instrumental de parte do pensamento ocidental. Sua obra é viva, rizomática, errante. Lançados no mundo, como os primeiros africanos a pisar no Caribe, seus conceitos, pulsantes, independentes, vivem em Relação.

O que explica seu encanto recente para o universo artístico. Quem passa pela Bienal de São Paulo encontra Glissant no tema central da mostra, “relação”, na instalação do malinês Manthia Diawara e na exposição dos cadernos e cartas de Glissant. Os estudos decoloniais também o incensam — ainda que, no Brasil, ele siga em parte restrito aos círculos francófonos. Enquanto outros intelectuais empenhados em pensar a história para além das matrizes eurocêntricas (Frantz Fanon, Angela Davis, Achille Mbembe) têm espaço cativo no debate nacional, Glissant continua distante. Tanto que só agora seu livro ganha versão brasileira. Uma explicação: seu caráter ensaístico-poético.

Reimaginar o mundo

Nascido na Martinica, Glissant se formou na França, onde conviveu com figuras como Frantz Fanon. Em 1956, publicou Soleil de la conscience: poétique (Sol da consciência: poética), inaugurando um programa intelectual que pretendia nada menos que fundar uma poética diferente para pensar o mundo — sob uma perspectiva outra: múltipla, aberta, errante. Três outros volumes compõem o projeto: A intenção poética, de 1969; Poética da Relação, de 1990; e Tratado do todo-mundo, de 1997. Nesse percurso de quase meio século, o conceito que emerge com mais força é o de Relação.

Não faltam conceitos ricos a Glissant, hoje usados nos estudos decoloniais para pensar a alteridade, a diferença, o outro além do olhar eurocêntrico, etnocêntrico, branco. Mas a Relação é o germe de tudo. Noção mutante, ela ganha camadas ao longo do ensaio, maleável, etérea, quase inatingível. Pois “a Relação, que conduz e aviva as humanidades, precisa da palavra para se editar, para se continuar”, diz Glissant. “Seu relatado na verdade não provém de um absoluto, ela se revela como a totalidade dos relativos postos em relação e ditos.”

Como o pensamento de Frantz Fanon, autor nascido na Martinica, influenciou a Reforma Psiquiátrica e a Luta Antimanicomial no Brasil

Sua essência, porém, reside na inexistência do absoluto, do prescritivo, do universal. Para fugir do dualismo totalitário do pensamento ocidental, a Relação se abre como diferença. Para Glissant, reconhecer a diferença é respeitar a “opacidade” do outro, aceitar o que não se pode entender — pois entender tudo é reduzir a experiência do outro a nossa própria verdade. Compreender, diz Glissant, é muitas vezes oprimir. A transparência guarda a violência. A opacidade permite o relativo. E o relativo nunca se reduz ao absoluto.

O que se reveste de um importante caráter político. A identidade dos povos colonizados, diz Glissant, tem sido pensada como uma eterna “oposição a”: uma busca pelo discurso de si a partir de uma limitação. A Relação permite se pensar a partir dos resíduos de culturas diversas, dos rastros, das faltas. E isso é válido sobretudo para entender como a cultura caribenha, múltipla como sua língua, crioula ela mesma, tem sua riqueza calcada justamente na possibilidade de não ser de todo compreendida.

Impossível em espaço tão curto fazer jus à riqueza do livro. Aqui está o conceito de “crioulização”, bem além da noção de mestiçagem ao alcançar “uma dimensão inédita que permite a cada um estar ali e alhures, enraizado e aberto, perdido na montanha e livre sob o mar, em acordo e em errância”; e de “errância”, central para entender como o autor pensa a identidade desenraizada de hoje, os fluxos de pessoas e conhecimento globais pervertem o que é centro e periferia, o eu e o outro. Toda categoria em Glissant se dilui diante da Relação, matriz epistemológica primordial que, mesmo quando flerta com o hermetismo e a pura poesia (e “a poética não é uma ciência”, ele frisa), parece mais rica para pensar o presente do que os cansados conceitos de sempre.

Este texto foi feito com o apoio da Embaixada da França no Brasil.

Quem escreveu esse texto

Willian Vieira

É jornalista e fez doutorado em letras francesas pela USP.

Matéria publicada na edição impressa #50 em agosto de 2021.