

Literatura brasileira,
‘Sete anos e um dia’ quatro décadas depois
Publicado nos anos 80 e novamente em circulação, romance de estreia de Elvira Vigna tem hoje ainda mais importância
18abr2025 | Edição #93Esta não é primeira vez. Em março de 2018, escrevi sobre Sete anos e um dia, da Elvira Vigna, para o extinto Suplemento Pernambuco, nos trinta anos de lançamento do romance. O livro estava completamente esgotado. Durante um tempo, permaneceu disponível para download gratuito no site da autora. Mas, na época, nem isso. Havia uma aura de tesouro extraviado em torno dele. Quem me arrumou uma cópia (e num arquivo de Word) foi o escritor Eric Novello, amigo da Elvira. Parecia que o livro não estava em lugar algum, além da minha caixa de e-mails. Nada como a sensação de entrar em contato com algo à deriva, perdido.
E perdido estávamos, todos nós, naquele março de 2018: o mês do assassinato de Marielle Franco. Fazia também seis meses da morte da Elvira e, em seis meses, a cena da facada em Jair Bolsonaro ajudaria a levar o Brasil para um longo período de horrores inclassificáveis e da incerteza como regra do jogo. Um período que ainda ninguém sabe direito se acabou totalmente. A sensação é que nos encontramos parados, ou em velocidade mínima, matando o tempo num lugar nenhum olhando sem muita confiança para o teto, presos, como num engarrafamento fora de hora, como tudo parece ser hoje em dia. Meio como numa história criada pela Elvira. O fato é que retorno ao romance agora, sete anos e alguns dias depois.

Sete anos e um dia, enfim, é relançado pela Companhia das Letras. No posfácio da nova edição, o escritor Alexandre Vidal Porto ressalta a impressão de uma travessia lenta, empacada, vivida pelos personagens, na qual encontro alguns paralelos no que enfrentamos agora, em 2025:
Na história, são claras as referências ao período de sete anos compreendido entre 1978 e 1985. Depois da fase mais sanguinária do regime militar, já nos encontramos em um lento e ambíguo processo de abertura política rumo à redemocratização do Brasil. Há esperança, mas tudo se move devagar.
Em 2018, o fantasma da ditadura militar estava saltitante entre nós. Havíamos acabado de atravessar um golpe parlamentar. A ascensão de Bolsonaro nas pesquisas eleitorais e na mídia trazia junto elogios a torturadores, que eram tratados como pop stars, num país que parecia permitir tudo, em nome da palavra cujo significado todos repetiam sem nem entender direito: “democracia”.
No momento em que escrevo este texto o fantasma da ditadura volta à cena
Por conta de todo o cenário, havia naquele 2018 um processo de repensar a forma como a literatura brasileira tratara a ditadura militar. De reavaliar obras, de enxergar o político onde ele não havia sido percebido antes. De encontrar o regime militar nos livros ainda que por subtração.
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Sete anos e alguns dias depois, o momento em que escrevo este texto, o fantasma — ou talvez aqui possamos falar de um monstro mais palpável, como um zumbi — da ditadura volta à cena. Bolsonaro, Trump, Milei e todos os outros nos ensinaram que o perigo à democracia hoje não está necessariamente no golpe de estado clássico, como foi o de 1964. A democracia é corroída dentro do seu próprio sistema, como um câncer atacando o organismo. O novo truque da ditadura é fingir que ela é algo natural. Um “agente infiltrado”, que não causa nem um só rasgo na pele, que não lança sangue ou promove ruptura. E em 2025, palavras como “anistia”, “família Rubens Paiva” e “militares” retornam para o centro das notícias, as mesmas palavras que estiveram nas manchetes naquela primeira metade da década de 1980, que é quando se passa o romance de Elvira.
Acredito que seja mais importante ler Sete anos e um dia agora que em 2018. Ou mesmo que em 1987, ano da sua primeira edição. Elvira Vigna sempre ganha na releitura.
Galera de boinha
Sete anos e um dia começou a ser escrito em 1984, quando a escritora e sua família decidiram morar por um período nos Estados Unidos. Mas só foi publicado três anos depois. Segundo o viúvo de Elvira Vigna, Roberto Lehmann, num depoimento colhido por Eric Novello, a obra seguiu o roteiro de criação típico da autora: “Como de hábito nos livros adultos da Elvira, Sete anos e um dia foi um romance inspirado em pessoas reais, eventos reais, histórias vividas ou ouvidas. No caso, pessoas com quem Elvira conviveu pouco antes da mudança. Me parece que um processo embrionário disso ainda. O tema da ditadura estava muito presente na época. A Elvira trabalhava em três empregos para poder se manter, e o livro mostra certa irritação dela com revolucionários filhinhos de papai. Essa galera que enchia a boca para repetir slogans, mas vivia de boinha sem trabalhar”.
“Sobre o livro, lembro de ela me falar muito da questão do nome, de que tinha sido um período estranho no país, com uma sensação de que ninguém sabia o que poderia acontecer, e que essa atmosfera não saía da cabeça dela. Que ela então começou isso de buscar inspiração em situações reais, coisas vividas e ouvidas, para construir as histórias, algo que ela usou até sua última publicação”, continuou Roberto.
A trama central do livro pode ser pensada como algo entre a história de uma amizade que chega ao fim ou um triângulo que, por falta de uma palavra mais específica, podemos chamar de amoroso. Temos aqui o Caloca (apelido infantil e bobão, como o personagem, a recobrir o nome Carlos Alberto), que após o fim do seu casamento com Bete começa a se envolver com a ex-namorada do amigo Pedro, a Catarina. Caloca, vejam só!, tem um fascínio pela estética, pela arquitetura, do Brasil Colônia e não vê qualquer tensão entre seu gosto e suas afinidades com a esquerda.
Mesmo com inúmeras dívidas rolando, Caloca quer construir a casa colonial dos seus sonhos. Já Pedro pensa, assim como tantos outros, na possibilidade de viver em Paris. Catarina, bem, ela está apenas ali entre os dois. Cada um dos personagens tenta aguentar como pode os anos de transição democrática num movimento entre a raiva e a indiferença, entre sonhar e reconstruir um passado, que se mostra glorioso (como costumam se mostrar os passados), e a fuga para o aeroporto mais próximo. Fora das páginas, o Brasil não ajudava muito: a anistia ampla, total e irrestrita fazia morrer a chance de culpar os crimes da ditadura, morrendo junto a possibilidade de uma imediata eleição direta para presidente. Morria também o primeiro presidente civil desde 1964, Tancredo Neves, há exatos quarenta anos, em abril de 1985.
Os parágrafos iniciais são exemplares em descrever o que vivia o brasileiro no começo dos anos 80
Os anos 80 no Brasil começaram, assim, com um desfile de cortejos fúnebres e terminaram com a derrocada econômica e com as mortes por causa da aids. De certa forma, todo esse cenário atravessa o romance de Elvira. Os parágrafos iniciais de Sete anos e um dia são exemplares em descrever o que vivia o brasileiro naquele momento, com o personagem Caloca tentando reconstruir a vida, renascer após anos difíceis, em meio a uma travessia cheia de entulhos por todos os lados:
Caloca começou a subir o barranco coberto de restos de capim queimado, garrafas quebradas, seringas de injeção, camisinhas de vênus, estopas, pneus, tijolos partidos, como quem sobe os degraus do paraíso, tirulá, alegremente, pois atrás dele, dentro do carro, um Volkswagen velho e sujo, estava Bete, e era um prazer deixar Volkswagen e Bete para trás. Adeus.
Caloca subiria o morro, desceria pelo outro lado, tomaria um ônibus qualquer, o primeiro, o dois dois dois dois que parte direto de Bonsucesso pra depois, e pronto, seria uma outra pessoa.
Para quem já conhece a literatura de Elvira Vigna, Sete anos e um dia traz a chance de ver o estilo da sua escrita em processo de desenvolvimento. Algumas marcas, no entanto, se fazem presentes desde esse livro, que foi sua estreia no romance: primeiros parágrafos que já fazem um panorama do abismo em que iremos ser jogados nas páginas seguintes, o uso de nomes infantilizados apontando a personalidade dos personagens e as descrições dos preconceitos da classe média brasileira. Exemplar disso é o caso da lembrança de Pedro da visita de um tio gay, tratado de forma violenta como o “veado” da família, durante sua infância:
O tio chega para a visita acompanhado de uma gaiola com um canário premiado. E numa casa com um gato, que até então só comia sardinha crua num prato rachado num canto da cozinha (todo detalhe de decadência é caro para a autora). Até então só se alimentava assim! A sequência que segue ao assassinato do canário pelo gato é evidência do poder narrativo de Elvira:
O tio veado se levantou, mudo, deixando o cigarro cair no chão. Pedro também se levantou, e nesta hora vinha chegando a mãe de Pedro com o café, e ficaram todos parados, o gato no centro, até que o tio veado saiu, mudo, sem se despedir, e o cigarro ficou lá no chão encerado, queimando sem pressa, e a mãe ficou segurando o café, também quente, e por uns instantes ficaram essas duas fumaças se mexendo lentas, na sala. E Pedro, que já havia ouvido um dia a mãe dizer que fora o diabo a se apossar do espírito do cunhado, achou que as duas fumaças eram o que restara da presença do Belzebu.
Esta foi a última vez que Pedro viu o tio, morto de um ataque cardíaco durante um incêndio. “O que veio corroborar a tese de Pedro: toda aquela fumaceira, Belzebu não resistiu”, narrou Elvira, implacável.
Outros fantasmas
Na releitura de Sete anos e um dia, para escrever este texto, percebi que o livro continuava vivo, fresco na minha memória. Apenas um detalhe havia passado despercebido: a dedicatória do livro e o quanto ela é cheia de significados neste 2025 — “A Pedro, Hugo, Nazaré e outros fantasmas”. Não é importante, claro, saber quem sejam Pedro, Hugo e Nazaré ou como eles aparecem ou não nesse livro. Mas fiquemos sempre com os “outros fantasmas”. São deles que a literatura é feita.
P.S.: Em 2026 são os dez anos de Como se estivéssemos em palimpsestos de putas, a obra-prima de Elvira Vigna, que merece uma reedição caprichada. Afinal, nada diz tanto sobre o Brasil quanto a imagem de um palimpsesto.
Matéria publicada na edição impressa #93 em abril de 2025.
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