Literatura brasileira,

O último tropicalista

Com ‘Amor’ — ficção dos anos 90 só agora reeditada no Brasil —, André Sant’Anna espia a metarrealidade brasileira de modo delirante

12nov2024
O escritor André Sant’Anna (Divulgação)

O André Sant’Anna é o gênio da burrice. Inventou de olhar para nossa realidade objetiva de modo literal, chapado, linear. Depois que você lê qualquer coisa que ele escreveu acaba pensando do mesmo jeito. Elimina todos os meio-tons, todas as nuances, contradições e especificidades possíveis e impossíveis da realidade objetiva e vê o universo do ponto de vista de uma azêmola e tudo fica muito mais gostosinho. Esse jeito de olhar para a realidade objetiva, curioso!, apareceu antes mesmo do bolsonarismo. Por isso digo que o André Sant’Anna inventou o bolsonarismo antes do Jair Bolsonaro. Leia Rush, uma ficção dos anos 90 em que um taxista reacionário e grosseiro fala diversas barbaridades enquanto solta o bordão “bom era no tempo da ditadura”. É puro Jair.

É como se o Sant’Anna tivesse captado uma forma de mastigar a realidade bem mastigadinha, um tipo de raciocínio em baixa rotação, um jeito de viver a vida brasileira de um modo abaixo do simplório. O mais curioso é que pessoas burras não entendem a linguagem do escritor, mesmo com todas as repetições, bordões e frases na ordem direta, porque por trás delas está um mecanismo embebido de ironia, sarcasmo, humor sombrio e uma perspectiva trágica do Brasil. Como se você visse um quadro do Romero Britto pintado pela Laerte: quem não entende arte não vai sacar a diferença. Daí a genialidade dessa burrice.

Um dos truques do autor é usar personagens reais em ficções fictícias (o pleonasmo é necessário). Na época em que eu editava a revista Trip, o convidei para ocupar uma coluna de ficção. Sua estreia foi com o conto “She’s leaving home”, em que Sant’Anna personificava a cantora Sandy em uma carta aos pais anunciando a despedida de sua adolescência. A coluna foi interrompida quando Sant’Anna escreveu uma história sobre Ronaldo Fenômeno e o empresário João Paulo Diniz num camarote do Sambódromo. O empresário, amigo do publisher, não gostou — e o escritor sumiu das páginas da revista. Que hoje também sumiu. Assim como o empresário, rip.

O incômodo de usar personagens reais em ficções fictícias persiste em Amor. “Cito muitos personagens históricos, Nelson Rodrigues, Pelé, Garrincha, Zico, Zagallo, Roberto Carlos… alguns deles ou seus herdeiros estavam processando a Companhia das Letras. Obviamente são delírios, não são biografias objetivas. Mas mesmo assim não quiseram reeditar o livro pra não tumultuar os processos que corriam”, contou Sant’Anna. Publicado em 1997 pelas Edições Dubolsinho, a estreia do filho de Sérgio Sant’Anna é reeditada agora pela valente Madame Psicose, depois de ser reeditada em Portugal, Itália e Alemanha. 

Quando o escreveu, o escritor mineiro era músico e morava com o pai carioca num apê das Laranjeiras. “É o livro que eu mais gosto”, conta. “Escrevi em 1987, sem nenhuma pretensão depois que levei um pé de uma namorada e estava sofrendo, começando a fazer análise. Era estagiário numa agência de publicidade, tinha essa força juvenil, sentia aquelas coisas com muita emoção.”

O autor usa essa coisa tão ausente na ficção contemporânea brasileira: a imaginação

Donos de escritas muito distintas, André e Sérgio Sant’Anna eram fascinados pela obra de José Agrippino de Paula — o pai da Tropicália, conforme diz Caetano Veloso. Em seu primeiro livro, Lugar público, de 1965, Agrippino usou nomes de personagens reais Como Cícero, Napoleão e Pio xii, para figuras que perambulavam por uma fantasmagórica São Paulo. O expediente foi magnificado em sua obra-prima, PanAmérica, protagonizada por Marilyn Monroe, Joe DiMaggio, Frank Sinatra, Karl Marx e grande elenco. Mas, embora conservem características físicas, sociais ou mesmo psíquicas dos personagens reais, Agrippino não usa personagens com profundidade psicológica — estão mais para figuras mitológicas.

O romancista e crítico inglês E. M. Forster distingue os personagens da ficção entre planos e esféricos, sendo os planos no nível caricatural parecido com as figuras de Sant’Anna. Pegando o gancho, Antonio Candido indicou Riobaldo Tatarana como o personagem esférico por excelência, dotado não só de multidimensões psicológicas e semânticas como também metafísicas. Já o crítico norte-americano James Wood não vê essa hierarquia colocando os planos no nível mais baixo e os esféricos no mais alto — o importante é se os personagens “engancham”, isto é, se funcionam no nível do enredo, se fisgam o leitor. E o fato é que as figuras de Sant’Anna habitam um limbo entre o plano de Forster e o mitológico de Agrippino.

Desgrudando-se da mimese psicológica, partindo daquilo que Roland Barthes chamou de biografema — uma expressão superficial e fragmentária da vida de uma personalidade —, seus personagens são quase memes, figuras conceituais que animam a ficção, flertam com o nível mitológico, porém também servem como metáforas sociais. Sant’Anna “engancha” personagens reais em situações insólitas, usando essa coisa tão ausente na ficção contemporânea brasileira, dependente química do realismo, do naturalismo e da sociologia: a imaginação.

Monotonia, repetição e frases em curto-circuito espessam o estilo de Sant’Anna, que trabalha seus temas de modo musical, como se fossem riffs, licks ou refrões. Os raciocínios tautológicos e rasos e os longos períodos que dão voltas e voltas retornando às vezes ao mesmo lugar lembram Samuel Beckett e Thomas Bernhard. “Acho que é um poema”, define Sant’Anna no prefácio da edição portuguesa, da Cotovia,de Amor e outras histórias. “Decidi escrever como se fizesse música, sem esquentar a cabeça, procurando me divertir ao máximo, trabalhando o mínimo.”

Sociedade brasileira

O Cristo e o governo e as bocetas nesse mundo e aquela cena da cobra engolindo o sapo e os leões devorando as criancinhas que esguicham sangue e o sol secando o sangue das criancinhas e o sangue das criancinhas se decompondo e liberando carbonos e formando petróleo: o combustível do piloto do carro em chamas.

Assim abre o romance Amor, tão parecido consigo mesmo do começo ao fim como o concreto que amalgama as figuras de PanAmérica. Seria André Sant’Anna o último tropicalista?

O narrador anônimo de Amor espia uma metarrealidade brasileira numa espécie de grau zero da linguagem — a burrice a que me refiro. “Sempre tive essa coisa política de olhar a sociedade brasileira, falando dessas temáticas de inclusão, das tais questões identitárias, só que de um modo irônico, e as pessas confundem”, diz o autor. “Já fui chamado de machista, entre outras coisas. Eu falava dos preconceitos do ponto de vista do agressor, tentando denunciar a agressão. Então acabam confundindo, achando que eu sou daquele jeito. Mas aquela linguagem que eu usava na ficção é a que passou a ser usada pelas pessoas trinta anos depois. Por isso é que hoje reeditei o livro de modo rigorosamente igual. Bom, se fosse para sair por uma editora grande, talvez diminuísse o número de ‘bocetas’”, ri Sant’Anna. De fato, se alguém tiver pruridos com o termo anatômico, já vai o spoiler: como fantasmas entre figuras meméticas, são 85 repetições da genitália feminina.

Quem escreveu esse texto

Ronaldo Bressane

É escritor, jornalista, professor de escrita, editor da revista de literatura e artes visuais Morel e autor de Escalpo (Reformatório).

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