Literatura brasileira,

Íntimo absurdo

Romance e livro de contos trazem de volta o estilo seco e o universo literário obsessivo de Otto Lara Resende

01ago2020 | Edição #36 ago.2020

Otto Lara Resende tinha uma relação tortuosa com seus textos, em uma dinâmica que até hoje teima em dividi-lo em dois polos — o célebre frasista e causeur reverenciado nas redações cariocas versus o autor deprimido e assombrado por si mesmo. A reedição de O lado humano, seu primeiro livro, e O braço direito, seu único romance, diz muito sobre sua relação com a escrita. 

A ideia de uma reedição dos nove contos que compõem o primeiro volume, de 1952, não despertava grande animação num Otto já mais experiente e obsessivo quanto às revisões. Já o segundo pode se chamar, à mot juste, de “livro de uma vida inteira”, como aponta o posfácio inédito de Ana Miranda. Os dois volumes não chegam fisicamente às livrarias: são vendidos on-line, nos formatos digital ou impresso on demand. Da primeira edição, em 1963, até dias antes da morte do autor, quase trinta anos mais tarde, a obra foi dolorosamente mexida, corrigida e ajustada centenas de vezes. Miranda trabalhava com o autor em uma edição definitiva, mas Otto morreu dias antes de revisar a parte derradeira. A edição foi lançada em 1993. 

Não transparece nos livros o Otto bem-humorado, que ficou famoso em crônicas e peças de Nelson Rodrigues, amigo que defendia o registro diuturno de suas frases. A faceta mundana ainda ofusca a do Otto autor. A uma suposta dicotomia é preferível dar lugar a uma única e totalizante complexidade, com claro ganho para suas narrativas, ainda subestimadas.

Contos

Em O lado humano, há mais tempo sumido do público, os textos rápidos, recheados de diálogos e frases curtas, são em sua maioria instantâneos bem recortados de episódios definidos pela secura das relações burocráticas e abusivas das grandes cidades. O tal “lado humano” dessas ligações imperfeitas entre personagens bruscos é o que se busca o tempo todo nessas histórias, que parecem querer abrir brechas na frieza institucional, vista tanto nos contatos amorosos quanto no cotidiano dos escritórios. Como aponta o posfácio detalhado de Clara de Andrade Alvim, os comportamentos “falhos, tortuosos” dos personagens se aliam a uma dimensão de virtude própria em cada um deles, o que é evidenciado nos ágeis diálogos.

A força dos contos está no enquadramento meticuloso das cenas retratadas 

No conto que dá título à obra, um emotivo pai apela ao “lado humano” do narrador, um advogado, para agilizar um processo seu, a fim de que possa levar o filho doente para tratamento nos Estados Unidos. O tom ríspido das respostas ao insistente sujeito só  muda — e as coisas acabam instantaneamente, inconclusivas — quando um dia ele surge com a mulher e afirma que vai se ausentar para a viagem, mas ela ficará. O desfecho, que traz consigo uma insinuação sexual repentina e estranha, alia-se a um aspecto também sem conclusão. 

A mesma atmosfera que alia o absurdo a um elemento doméstico, com uma intimidade prestes a gerar constrangimentos, dá o tom de parte dos contos, cuja força também está no enquadramento meticuloso das cenas retratadas. Um idoso solitário espera na rua uma prostituta sair do trabalho; um garoto do interior, pela primeira vez na praia, se excita sem querer com os corpos à mostra; uma jovem balconista é perseguida por um pretendente casado. Encontros fortuitos entre casais, aliás, são um tema recorrente. 

As mulheres se mostram feridas por homens que parecem habitar mundos diferentes dos delas, como em “Das Dores”. Maria das Dores, que se apresenta com outro nome porque estava “cansada de ser Maria, cansada de ser Das Dores”, vive espremida entre a família, que quer vê-la unida a um primo, e o pretendente. Ainda que essas mulheres pareçam se ver assombradas, principalmente por homens, elas conseguem fazer soar, em diálogos secos, uma desenvoltura maior que a deles, como se conseguissem estar um passo à frente e soubessem disso.

Monólogo

O mosaico de vozes visto em O lado humano encontra via bastante diversa em O braço direito, capítulo à parte na obra de Otto. O seu único romance, chamado por Antonio Candido de “livro poderoso e estranho”, é um monólogo escrito na forma de entradas de um diário pelo zelador Laurindo Flores, responsável por um orfanato católico na fictícia cidade mineira de Lagedo, herança do Ciclo do Ouro e feita à imagem e semelhança da São João del-Rei em que nasceu Otto. 

Vivendo na escassez junto com os órfãos, que o posfácio de Ana Miranda classifica com eficácia de “fantasmas”, em um casarão colonial já em ruínas, o protagonista começa a escrever todas as noites num caderno que comprou fiado. A rotina do zelador, católico trágico, conhecedor dos sacramentos e da vida dos santos, gira em torno da fé e das ameaças que o mundo coloca à obra cristã de todos os dias, curada em um amargor que envolve pobreza, picuinhas políticas e violência. 

Embora o dogmático protagonista assuma que escrever parece “algo de inaugural em minha vida”, ele também vê a atitude com a culpa cristã com que se define, afirmando no início que escrever “é inconveniente, sobretudo se escrevo sobre mim, para mim mesmo”. Por se tratar de um diário, o tom é naturalmente confessional, mas no contexto religioso se potencializa e ganha outro significado no conceito de remissão dos pecados. A estranheza apontada por Candido está principalmente na condição do protagonista, que, apesar de ter acesso aos figurões da cidade, mantenedores do orfanato, é ignorado constantemente, mas parece não se ressentir disso. Pelo contrário, aceita as humilhações, como se as merecesse, e se vira para a tradição: a contemplação do Jesus crucificado em seu quarto, o castigo dos órfãos e a raiva contra a maçonaria, em uma fé que se alimenta de si mesma. Tudo parece caminhar em busca de um perdão que nunca sabemos se vem, e que só o zelador pode ver, talvez na própria escrita.

Como “um falante que ama o silêncio”, uma das frases conhecidas de Otto Lara Resende, a profundeza de sua obra é bem fixada nesses dois livros que, somados às crônicas reunidas, formam um conjunto poderoso e não deixam de falar das contradições do próprio autor. Para nossa sorte, no entanto, elas jogam a nosso favor.

Quem escreveu esse texto

Victor Calcagno

É jornalista.

Matéria publicada na edição impressa #36 ago.2020 em maio de 2020.