A Feira do Livro, Literatura brasileira,

Incômodo bom

Escritor brasiliense defende literatura que espelha a violência do país e a complexidade das pessoas

01jun2024 • Atualizado em: 29maio2024 | Edição #82

“O livro é chato e pretensioso. Sou guerreiro para ler livros ruins, mas esse eu abandonei.” O comentário foi sobre Vale o que tá escrito, romance de estreia do escritor que assina apenas como Dan. Mas quem acha que a crítica foi recebida com ressentimento, se engana. “Esse eu adorei”, diz o autor. Dan diz que é bom saber que uma pessoa que nem o conhece, em algum lugar distante, se incomodou com algo que ele escreveu. “A literatura é o único lugar onde faço tudo do jeito que quero, sem prestar contas. Então, foda–se quem não gostar. Eu acho o máximo”, resume o escritor, uma das atrações d’A Feira do Livro 2024. 

Como João de Santo Cristo, personagem da saga cantada pela Legião Urbana em “Faroeste caboclo”, o brasiliense diz que também “se sentia diferente e achava que aquilo que vivia não era o seu lugar”. Na escola, não se interessava pelas aulas de literatura, menos ainda pela leitura obrigatória de clássicos. Tudo mudou quando conheceu a coleção Vaga-Lume na biblioteca escolar. A série de livros infantojuvenis fez a cabeça do estudante, principalmente as histórias policiais de Marcos Rey. 

Em casa, os pais ficavam intrigados de como o filho, que estava sempre lendo livros, podia tirar notas baixas em literatura. E a resposta era sempre a mesma: a escola passava os títulos chatos, enquanto ele lia o que era interessante. Além de ser avesso às indicações do currículo obrigatório, o bom-mocismo dos clássicos não o interessava. Para Dan, os lados opostos, as dualidades, nunca fizeram sentido. Não há gente só boa ou má, mas tudo misturado em todo mundo.

Diferente de alguns colegas escritores, Dan não tem problema em admitir que até hoje não se vê como um grande leitor. “Estimo que terminei só 15% dos livros que comecei a ler”, diz. “Sou um leitor indisciplinado.” Foi o primeiro contato com a ficção de Rubem Fonseca, ainda na infância, que o fisgou de vez. Ali descobriu que nos livros “cabiam outras coisas”.

Habilidades negativas

Já adulto, tomou gosto também por escrever. Dava aulas de escrita criativa e se achava “meio velho para lançar o primeiro livro”. Foi quando pensou em escrever sobre a violência de um jeito que não encontrou nos romances que lia. As histórias, segundo Dan, sempre consideram habilidades como positivas, como alguém que tem dom para um esporte e vira um campeão. Mas e os sujeitos com habilidades negativas? “E se o cara tem um dom ruim, mas ao mesmo tempo um conjunto de valores morais para segurar isso?”

Essa foi a pergunta que guiou a escrita do primeiro romance. Assim como em “Faroeste caboclo”, o enredo de Vale o que tá escrito vai fundo na violência da periferia de Brasília, cenário em que personagens como o miliciano Boamorte constroem sua trajetória, que se confunde com a construção da capital. Além de protagonistas que são mais complexos que os vilões e heróis de antigos clássicos, Dan diz ter misturado na história tudo aquilo que o agrada enquanto leitor, como faroeste, romance policial e humor.

Para Dan, os lados opostos, as dualidades, nunca fizeram sentido. Não há gente só boa e má

Com título retirado de uma expressão famosa do jogo do bicho — quem assistiu à série quase homônima Vale o escrito, do Globoplay, conhece a referência —, o romance põe na mesa outros temas indigestos, que Dan vê como uma maneira de fazer o leitor pensar junto e, até mesmo, ter empatia por personagens moralmente condenáveis.“Terminei o livro querendo abraçar milicianos e tomar uma cerveja com bicheiro”, escreveu um leitor, numa das reações que também agradaram ao autor.

Para Dan, o pior que um romance pode fazer é reiterar aquilo que o leitor quer ler. Fugir de personagens e histórias edificantes, correr da ideia de redenção de um país violento e usar a leitura como possibilidade de acessar outros mundos eram alguns dos objetivos que queria alcançar com a história. “A literatura é um terreno maneiro para promover a baderna”, afirma. “O papel dos livros, como um todo, é também incomodar.”

Quem escreveu esse texto

Lucas Veloso

É jornalista audiovisual.

Matéria publicada na edição impressa #82 em junho de 2024.

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