Literatura brasileira,

Como se tornar moderno

Conselheiro Aires, famoso personagem de Machado de Assis, ganha roupagem atual em novo romance de João Almino

14mar2022 | Edição #56

Em um primeiro momento, pode parecer uma missão delicada para um escritor apoderar-se de um personagem de Machado de Assis e trazê-lo para a atualidade em um romance. Tarefa desafiadora especialmente quando se trata de  Conselheiro Aires, personagem tão estimado pelos leitores machadianos. Parte do carisma de José da Costa Marcondes Aires — seu nome completo — deve-se principalmente ao caráter temperado e à capacidade de escutar e observar para, então, narrar os dramas humanos.

Aires, um diplomata aposentado, conta, em forma de diário, sua vida em 1888 e 1889, quando volta para o Brasil após passagem pela Europa, no seu Memorial de Aires (1908). Entretanto, os leitores já conheciam o personagem de Esaú e Jacó (1904), no qual se descobre que o romance é, na verdade, o décimo tomo do Memorial que o conselheiro estava escrevendo. Agora, Aires ganha fumos de modernidade em Homem de papel, oitavo romance de João Almino, o segundo desde que o escritor passou a integrar a Academia Brasileira de Letras (ABL), casa dos imortais fundada por Machado. Em Homem de papel, Aires é renovado, mas continua no papel de narrador.


Homem de papel, de João Almino

A forma como o leitor descobre quem narra já se encontra na primeira frase do romance: “Flor me colocava numa estante baixa entre uma cômoda de três gavetas e uma escrivaninha coberta de papéis desarrumados”. A oração inicial permite inferir de imediato que a voz está dentro de um livro na estante de Flor, uma das personagens. “Não quero valorizar essas minúcias, que não deveriam me ocupar quando me concentro na história principal. Se é que lhes conto uma história”, prossegue o narrador. Aqui, o Aires de Almino ressoa o Aires de Machado, que narra detalhes de seus compromissos e histórias para depois desculpar-se pelos seus supostos excessos em “minúcias”.

Almino — ele próprio um diplomata de carreira — conseguiu manter a coerência do personagem ao rejuvenescê-lo. Os leitores familiarizados com a voz de Aires e sua mentalidade aberta ao novo e sua convicção em não tomar partido de grandes questões não se decepcionarão. Na verdade, é quase um presente descobrir que é possível um Aires que usa “boné e óculos escuros” e caminha pelas ruas de Brasília, cidade que percorre parte significativa da obra de Almino. É lá que os ossos do conselheiro, doloridos devido ao reumatismo, param de doer. A cura não decorre da mudança de ares, do Rio de Janeiro para Brasília. O narrador explica e joga luz sobre o título da obra: “Passei a ter papel no lugar de ossos”.

Emancipação

Aires não apenas narra episódios vividos pela personagem Flor, a dona do livro, como também acompanha sua trajetória, de estudante à diplomata, passando a participar dela. Isso só é viável graças à emancipação do homem de papel, então preso ao livro. Esta emancipação ocorre em quatro etapas ao longo do romance. A primeira, quando Aires apenas escuta o que se passa ao seu redor, seja com o livro na estante ou fora dele. A segunda, quando Aires passa a escrever no livro, inserindo frases e até sinais de pontuação reconhecidos como novos por Flor. É adorável, porém não menos convincente, quando Aires deixa um emoji de sorriso para Flor, que enfrenta um momento de aflição. “Era como se eu tivesse me tornado moderno”, conta o narrador. A terceira etapa é quando Aires passa a falar de dentro do livro. Por fim, Aires sai do exemplar, inicialmente visível apenas para a dona da publicação.

A fusão de Machado de Assis com Jorge Amado faz com que ‘Homem de Papel’ seja o melhor livro de João Almino

Flor é uma mulher dividida entre o amor de Cássio e Zenir, desde a sua juventude. Seu dilema lembra aquele enfrentado pela personagem Flora, de Esaú e Jacó. Flora é objeto da paixão dos irmãos gêmeos Pedro e Paulo, opostos entre si inclusive politicamente. Enquanto um é monarquista, o outro é republicano. Flora também padece da indecisão entre os pretendentes. Mas a Flor de Almino não remete apenas a Machado de Assis, mas a Jorge Amado. Ela é um pouco Dona Flor e seus dois maridos (1966), como faz questão de apontar o personagem Zenir. Na saborosa obra amadiana, Flor é uma viúva que ama tanto o malandro Vadinho, o marido morto que aparece nu em forma de espírito, como o novo marido, o correto Teodoro.

Realismo mágico

Almino faz com que seja verossímil que Aires saia do livro e circule por Brasília. Há aí o traço de realismo mágico que também o aproxima de Jorge Amado. Não apenas há um diálogo com Dona Flor, como com O sumiço da santa (1988). No livro, uma imagem de Santa Bárbara, talhada por Aleijadinho, ganha vida ao desembarcar para ser exposta em um museu.

Além do elemento mágico, O sumiço da santa também é uma sátira política e trata de movimentos sociais e ditadura militar. Em Homem de papel, Almino não foge do contexto político. Os irmãos trigêmeos de Flor brigam por discordar sobre os rumos do país. Sabe-se que ocorreu um impeachment no Brasil e outro chega a ser cogitado. Em tom de fábula, antas — sim, os animais — invadem Brasília. Uma anta ganha fama e é aclamada para concorrer à Presidência. No Memorial de Aires, o contexto social e político é o do fim da escravidão e a proclamação da República.

A fusão de Machado de Assis com Jorge Amado somada à originalidade de um Aires rejuvenescido faz com que Homem de Papel seja o melhor livro de João Almino. O escritor não poupa delicadezas para os leitores, com referências de outras obras machadianas e do próprio Almino. O fotógrafo Cadu, personagem de Ideias para onde passar o fim do mundo (1987), romance de estreia de Almino, encontra com Aires. A mulher de Almino, a artista plástica Bia Wouk, também surge no livro, com um quadro que decora um ambiente. Diz-se que em Memorial de Aires Machado de Assis também teria colocado um pouco de sua biografia nos personagens Aguiar e D. Carmo, um casal sem filhos, assim como o autor e a mulher Carolina.

Logo no início de Memorial, Machado escreveu que a publicação estava “desbastada e estreita” e indicou: “O resto aparecerá um dia, se aparecer algum dia”. Graças ao poder da literatura de inventar uma nova realidade, é como se Almino tivesse dado continuidade ao Memorial.

Matéria publicada na edição impressa #56 em fevereiro de 2022.