Literatura,

Um assassino em meio à multidão

Romance mergulha na mente sombria de narrador que comete um feminicídio na Buenos Aires dos anos 40

17out2023 | Edição #75

Escritores contemporâneos e conterrâneos do argentino Ernesto Sabato (1911-2011) o achincalharam. Julio Cortázar, três anos mais jovem, o chamou de “moleque” ao rebaixar sua literatura; Jorge Luis Borges o insultou de “energúmeno” e reconheceu jamais ter tido afeição por ele, conforme registram as anotações de Adolfo Bioy Casares, que, por sua vez, lhe prognosticou um desaparecimento sem rastros após a morte. A lista de ofensas e ofensores é longa.

O português José Saramago, que não tinha nada a ver com as contendas do nosso país vizinho, pôde e, mais do que poder, decidiu afirmá-lo como “eminentemente lúcido”. O advérbio, vá lá. Mas o adjetivo não deve ser o primeiro que vem à mente da maioria dos leitores do romance O túnel, obra-prima de Sabato relançada agora pela editora Carambaia com a tradução de Sérgio Molina e um posfácio acadêmico de Caio Sarack.

Concebida por Oga Mendonça, a capa dura do livro, psicodélica, antecipa o tom alucinante do texto composto de 39 capítulos curtos. O narrador Juan Pablo Castel confessa, logo no primeiro parágrafo, que matou María Iribarne e, a partir daí, relata os acontecimentos, mas sobretudo os pensamentos — confusos, caóticos, sombrios — que o levaram a cometer o feminicídio numa Buenos Aires em plena metropolização.

O túnel foi publicado originalmente em 1948. Poucos anos antes, a chamada década infame trouxera uma ditadura cívico-militar à Argentina e um grande êxodo rural como consequência de suas políticas econômicas. As cidades, a capital federal mais que todas, começavam a se adensar como nunca. Muitos mais portenhos passaram a transitar nas ruas e avenidas, trabalhar nas fábricas e nas lojas, consumir, produzir lixo, escrever cartas de amor, de ódio, cartas burocráticas, pedir permiso, concedê-lo, negá-lo, frequentar bares, escolas, galerias de arte.

O assassinato é um ato extremo provocado pelas condições de uma cidade em explosão demográfica

A pintura, aliás principal atividade de Sabato depois de ser acometido por uma doença ocular que o cegou e encerrou sua carreira literária, serve como ponto de partida da história. Castel, que além de assassino confesso é também pintor, está com um quadro em exposição, e o incomoda o fato de todo o público admirá-lo, achar sua obra sólida só porque assim o considerou a crítica. Incomoda-o, na verdade, a mesmice, a massa uniforme que segue o estabelecido e não exerce seu direito de se desmembrar em indivíduos autônomos, pensantes. Castel transfere isso à humanidade, e o incômodo se transforma em ódio por tudo e todos.

Entretanto, aparece frente ao quadro María, que repara num detalhe que ninguém mais percebe. Ela é alguém que, enfim, foge à regra. Castel fica obcecado à primeira vista. E sofre no instante seguinte, quando a perde em meio à multidão e teme nunca mais a encontrar nessa Buenos Aires superpopulosa. Poderia, atrasado, fazer a pergunta dramática e metafísica de um Baudelaire: “Não mais hei de te ver senão na eternidade?”. Mas se limita ao seguinte:

Observei-a o tempo todo com ansiedade. Depois ela desapareceu na multidão, enquanto eu vacilava entre um medo invencível e um desejo angustiante de chamá-la. Medo de quê? Talvez fosse um pouco como o medo de apostar todo o dinheiro de que se dispõe na vida em um único número. Entretanto, quando ela desapareceu, senti-me irritado, infeliz, pensando que poderia não vê-la mais, perdida entre os milhões de habitantes anônimos de Buenos Aires.

Estão listados acima sentimentos de um cidadão que se encontra, quase que de repente, no meio de um aglomerado urbano: irritação, infelicidade, ansiedade, medo. O assassinato de María Iribarne por Castel é um ato criminoso e extremo, cometido por alguém num estado de espírito provocado por condições perturbadoras de uma cidade em explosão demográfica. Daí pouco importa que Sabato ponha seu narrador para confessar o desfecho da história logo no primeiro parágrafo do livro — mais importante, em O túnel, é a descrição da complexidade desses e de outros sentimentos na consciência de um ser humano.

Os conflitos

Devastado por uma solidão que não para de crescer a despeito da quantidade de gente que o circunda, Castel tem dois conflitos imediatos. Um deles é simples e pragmático: reencontrar a mulher que chamou sua atenção — e já sabemos que ele não só a reencontra como também descobre quem ela é e acaba por matá-la. O outro é mais grave e permanente, porque não admite solução fácil. Embora a situação de Castel seja desesperadora e sua obsessão se torne cada vez mais doentia, colocando-o na escuridão quase absoluta, a única luz no fim do túnel que ele enxerga é a razão; mas a razão é o túnel. Não cansa de aplicar raciocínios lógicos, criar hipóteses, refutá-las e confirmá-las, para tentar entender, de modo claro, ordenado e praticamente científico, o que acontece em sua existência.

Sabato se formou em física e abandonou a carreira por desilusão, como indica e reitera na entrevista que concedeu ao programa Roda Viva, em 1994. Ao que parece, o autor compreendeu que, muitas vezes, existe incompatibilidade entre os fatos e os métodos utilizados para explicá-los, e foi dessa incompatibilidade que se valeu para dar estofo ao seu protagonista. O resultado do conflito interior que nunca se resolve é, dos dois, um: Castel se frustra miseravelmente ou força conclusões que lhe convêm.

A letra era nervosa, ou pelo menos era a letra de uma pessoa nervosa. Não é a mesma coisa, pois, se a primeira hipótese fosse verdadeira, manifestava uma emoção atual e, portanto, um indício favorável a meu problema. Seja como for, emocionou-me muitíssimo a assinatura: María. Simplesmente María. Essa simplicidade me dava uma vaga ideia de que eu a possuía, uma vaga ideia de que a moça já estava em minha vida e que, de certo modo, me pertencia.

Ainda que a psicanálise não tenha sido mencionada aqui, leituras psicanalíticas de O túnel vêm sendo feitas desde o lançamento do romance, baseadas em inúmeros elementos narrativos, como os muitos sonhos transcritos, o título do quadro de Castel, “Maternidade”, e o nome María, paradigmático no que diz respeito a mães. Mas principalmente porque Castel é um homem a quem facilmente se poderia sugerir: Vai fazer terapia!

Quem escreveu esse texto

Luis Campagnoli

Matéria publicada na edição impressa #75 em outubro de 2023.