Literatura,

Fragmentos do discurso amoroso

Jerónimo Pizarro mostra em “Ler Pessoa” que vastidão da obra torna poeta português ainda atuante na literatura contemporânea

23maio2023 | Edição #71

É surpreendente constatar que, mesmo falecido em 1935, aos 47 anos, Fernando Pessoa ainda é, de certa forma, um autor contemporâneo. Isso por variadas razões — seus temas, seus enigmas, seu questionamento da identidade —, mas especialmente devido ao fato de “dar nome” a uma obra ainda em curso de publicação. Em seu livro Ler Pessoa, Jerónimo Pizarro dá o exemplo do Livro do desassossego: publicado quase cinquenta anos depois da morte de Pessoa, já teve como indicação de autoria ao menos três nomes (Pessoa, Bernardo Soares, Vicente Guedes), além de ter passado pela mão de seis editores, cada um deles organizando os fragmentos de um modo específico, mobilizando justificativas que levam em consideração também o aspecto material da obra, já que Pessoa deixou fragmentos manuscritos, datilografados e impressos.

Organizado em oito capítulos intitulados a partir de questões e personagens — como “Unidade” e “Interpretação” ou “Alberto Caeiro” e “Ricardo Reis” —, Ler Pessoa é tanto uma boa introdução quanto um panorama das principais discussões críticas em torno das obras do poeta português. Leitor dedicado de Shakespeare e Walt Whitman, Pessoa foi um artista que pensou, simultaneamente, o local e o universal, além de investir em uma proliferação radical da subjetividade poética, naquilo que ficou conhecida como a dinâmica entre o “ortônimo” e seus “heterônimos”. Nas palavras de Pizarro, o que Pessoa quis conceitualizar foi o seguinte: “por um lado, ele próprio escrevia”; por outro, “escrevia como alguém diferente de si mesmo”. É dessa situação atípica que surgem versos como: “O poeta é um fingidor/ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente”, em “Autopsicografia”.

Leitor de Shakespeare e Walt Whitman, Pessoa foi um artista que pensou o local e o universal

Com frequência, no livro de Pizarro, o trabalho do leitor profissional de Pessoa — aquele que manipula os originais e analisa as variantes — faz pensar no inventário de provas de um delito ainda não esclarecido. As descrições dos materiais são eloquentes: “Uma folha azul de papel almaço picotada na parte superior. Ao alto está o nome ‘Ricardo Reis’”; “A metade inferior de uma folha de papel de máquina dactilografada a tinta azul. A folha terá sido rasgada ao meio para conservar apenas o texto editado”.

São essas pistas que devem ser analisadas sempre que se quer “imprimir” Pessoa, já que em pouquíssimos casos ele próprio propôs uma versão definitiva para publicação. Ao comentar o caso do heterônimo Ricardo Reis, Pizarro afirma: “O nosso Reis é um texto múltiplo que depende dos critérios de cada editor e da perícia com que cada um interprete a gênese de determinados testemunhos”. E reitera no caso de Alberto Caeiro, definido por Pessoa como o mestre de todos: “Estamos tão acostumados a ler os autores como entidades fechadas que eu entendo Caeiro como um convite a descobrir o conceito de ‘autor aberto’, ou seja, de um autor construído no tempo e pelos outros (entre os quais nos incluímos nós, os seus leitores)”. Por causa do pouco que publicou em vida, e também pela vastidão do material de seu arquivo, Pessoa continua, de certa forma, atuante no interior da literatura contemporânea, pela via do trabalho dos editores.

Um exemplo pode ajudar a dar a medida da complexidade das variantes nos textos de Pessoa. Pizarro, no capítulo dedicado a Ricardo Reis, relata uma conversa entre Inês Pedrosa e Richard Zenith (autor do recente e monumental Pessoa: uma biografia, além de editor de uma das versões do Livro do desassossego) “sobre a impossibilidade de uma fixação fidedigna ou definitiva da obra de Pessoa”. Diante disso, surge a ideia de submeter uma das odes mais “recheada de variantes” de Ricardo Reis — um segmento da obra do poeta português com fama de abundância — a um “programa matemático”: o objetivo era o de observar quantos “novos” poemas nasceriam dessa operação de permutação, como as variantes poderiam se combinar em prol de uma obra pessoana ainda em “potência”. O número exato de novos poemas a partir de uma única ode é impressionante: 28. 224. E Pizarro completa: “Esse é praticamente o número total dos documentos que compõem o espólio pessoano (cerca de 30 mil)”.

Joia hermenêutica

A grande joia hermenêutica que irradia luminosidade no restante do livro está na passagem em que Pizarro retoma o célebre poema “Liberdade”, no qual Pessoa declara, logo no início: “Ai que prazer/ Não cumprir um dever,/ Ter um livro para ler/ E não o fazer!”. Na versão datilografada por ele, existe, logo abaixo do título, uma indicação colocada entre parênteses: “falta uma citação de Sêneca”. Por que Sêneca e qual citação poderia ser essa que falta? A explicação está no prêmio recebido por Pessoa por seu livro Mensagem, o único que publicou em vida, em 1934. A honraria, na verdade, era qualificada como de “segunda categoria”, tendo sido apresentada em cerimônia que contou com uma fala do ditador António de Oliveira Salazar. No discurso, realizado em 21 de fevereiro de 1935, ao qual Pessoa não compareceu, Salazar aproveita para anunciar “a restrição de certas liberdades”, como escreve Pizarro, além de incorporar uma rápida menção a Da tranquilidade da alma, obra do filósofo estoico romano Sêneca.

O poema, datado de 15 de março de 1935, é uma resposta ao discurso de Salazar e a citação de Sêneca deveria vir diretamente deste — operação que Pessoa acabou não concluindo. “Liberdade” abre caminho, escreve Pizarro, “para uma espantosa antologia de poemas mais ou menos políticos que Pessoa, para se proteger, deixou guardados nas suas arcas e apenas partilhou com alguns amigos”. A falta da epígrafe, portanto, faz parte do poema. Pizarro comenta que o poema pode ser lido como “um elogio provocatório da preguiça de que o ditador acusa os intelectuais da oposição”, uma noção que só alcança plena efetividade com a história da epígrafe faltante.

Em resumo, a obra de Fernando Pessoa segue disponível para descoberta e encanto, mas Ler Pessoa torna a experiência bem mais rica e nuançada. Já que o leitor não pode se colocar, pessoalmente, diante da arca do poeta e de seus 30 mil documentos, o livro de Jerónimo Pizarro funciona como uma sorte de guia pelas possibilidades dessa literatura ainda em processo. 

Quem escreveu esse texto

Kelvin Falcão Klein

Professor da Unirio, é autor de Cartografias da disputa: entre literatura e filosofia (Editora UFPR).

Matéria publicada na edição impressa #71 em maio de 2023.