Literatura,

Até a raiz dos ossos

Romances e ensaios da chilena Diamela Eltit têm como fio condutor o destino dos corpos esgarçados pelo século 20

14nov2018 | Edição #8 dez.17-fev.18

Demorou 34 anos para a obra de Diamela Eltit atravessar a cordilheira e chegar ao Brasil. Esse é o tempo que separa sua estreia no Chile, com Lumpérica, em 1983, de sua participação na Flip em julho passado, com a bem-vinda tradução do romance Jamais o fogo nunca e de alguns de seus ensaios no e-book A máquina Pinochet.

Um dos principais nomes da literatura chilena contemporânea, Diamela constrói, tanto no volume de ensaios como no romance, um vocabulário que confere especificidade e coerência a seu trabalho e que vale a pena esmiuçar porque revela a categoria de sua obra ficcional e ensaística.

Jamais o fogo nunca, publicado originalmente em 2007, é um verso do perturbador poema de César Vallejo “Os nove monstros”, usado também como epígrafe (com o acréscimo de um segundo verso: “Fez melhor seu papel de morto frio”). A repetição sugere que ali se tenha uma boa chave para ler o romance.

O enredo parece simples: um casal, encerrado num quarto, tem conversas a respeito da militância política que tanto exigiu dos dois e que a mulher põe em xeque. De fato, são apenas esboços de conversas, já que o marido, fechado em si, quer simplesmente terminar a discussão. Narrado pela mulher, o livro é atravessado pelo bafio do quarto e o mofo da relação. O passado assombra de tal forma o marido e a mulher que o tempo parece quase suspenso. (Se há algo que faz sentir a passagem do tempo, aliás, é a deterioração dos corpos ao longo das páginas do livro: o do marido, desistido das ruas e da vida, mas também o da senhora de cujos cuidados ela se ocupa semanalmente em troca de um salário.)

No espaço claustrofóbico da relação, apenas a morte parece entrar: a dos companheiros de militância, a do filho ou até a que se insinua ao próprio casal, cujos corpos, esgarçados pelo “século que [os] depredou”, resumem-se a ossos. Os ossos, essa imagem potente e pavorosa que alinhava o livro (e que também remete à poesia de Vallejo), no entanto, sustentam corpos inertes.

A recusa a saírem de casa (“a rua nos parece um hieróglifo”, diz a mulher) evidencia a desistência da utopia por parte do casal: quando já não há mais nada por que lutar, a vida parece se desfazer. Em Jamais o fogo nunca, a rua, o público, aquilo em que aquele casal empenhou tanta energia, tornam-se, para os dois, o espaço fóbico, recusado: “Você quer, eu pergunto, ler o jornal. Não consigo, você responde, agora não. Acompanhamos com distância, e até com uma frieza ostensiva, o acontecer em que se organiza o sempre colapsado presente”.

O “dentro” e o “fora”, categorias de que Diamela lançará mão em seu livro de ensaios, estão presentes no romance, em uma infindável discussão do casal sobre o destino da “célula” — a célula política, é claro, mas também a célula conjugal e a célula, que é cela, em que os dois vivem: “Continuamos linearmente convivendo com uma época que não nos cabe, cada vez mais enxutos, severos, mantendo um silêncio eloquente diante de tudo aquilo que esteja fora das nossas convicções”.

O enraizamento assume no romance um sentido negativo porque leva ao imobilismo: “Até que ponto estamos comprometidos desde a raiz mais insólita dos nossos ossos”, pergunta ela. Radicar-se em um quarto tornou-se a escolha possível para eles: protegem-se das ruas pelas quais já não aparentam ter interesse porque estas se tornaram um “campo minado”, o espaço do inimigo. As ruas são o espaço (público, porém) que foi tomado pelas forças repressivas e onde os grupos que resistem à opressão encontram-se mais vulneráveis — como enfrentar essa situação-paradoxo?

Do romance aos ensaios, esse léxico familiar a Diamela — ossos, corpos em putrefação — remete a uma história sombria que vigeu mais lá do que cá

O romance de Diamela, espécie de distopia do século 21, formaliza-se em linguagem poética, construída por meio de imagens de corpos em ruína, e também do fantasmagórico, de um passado pertinaz, de “um século em que ingenuamente acreditamos e que nos lançou numa queda a pique em direção a uma esperança absurda”.

Diamela faz da indeterminação — marca de sua escrita — sua resposta à brutalidade, faz do experimentalismo de sua prosa uma resposta ao embotamento. Escreve sobre os ossos que se calcificam para impedir que sejam engessados. Sua força emerge justamente da negatividade.

De Pinochet a Bachelet

Organizado por Javier Guerrero e Pedro Meira Monteiro, seu livro de ensaios — A máquina Pinochet — expõe a mesma postura corrosiva nas reflexões que comporta. Em dez textos publicados entre o fim dos anos 1990 e 2016, com assuntos tão sortidos como Augusto Pinochet, Giorgio Agamben, Julian Assange, Michelle Bachelet e uma cerimônia de santería em Nova York, Diamela discute temas da política, do feminismo, da literatura. Neles, aparece também a reflexão sobre o destino dos corpos, fio condutor de seu trabalho.

Em “1974”, texto que abre o livro, ela marca como aquele ano foi decisivo para o controle dos corpos, que, a partir de então, “seriam cuidadosamente vigiados, militarmente diagramados, tecnicamente reduzidos”. Não à toa, o termo “golpe” é analisado inicialmente em termos físicos, como algo que atinge o corpo — que sofre a tortura, o crime e o desaparecimento. A autora alerta: não se pode “esquecer jamais a relação histórica entre corpo, poder e desamparo”.

Sentença que ecoa no irônico “A máquina Pinochet”, em que, sobre o ditador, observa: “Sua própria coluna vertebral o fez tombar” (Pinochet havia sido detido em Londres quando se recuperava de uma operação na coluna).

“Voltas e revoltas de Michelle Bachelet no poder”, ensaio que não por acaso fecha o volume, leva o leitor brasileiro a fazer inevitáveis comparações com o percurso de Dilma Rousseff, e por isso traz também certo travo. Fosse a história diferente, quem sabe hoje não precisássemos ter um corpo estranho no poder.

Do romance aos ensaios, esse léxico familiar a Diamela remete a certa elaboração de uma história sombria que, na ficção e na poesia dos países latino-americanos, vigeu mais lá do que cá: ossos, corpos em putrefação, decompostos. A história de violência e autoritarismo, porém, se espraia pelo continente e nos atravessa. Sua obra chega por isso mesmo (ainda que com injustificável atraso) a tempo.  

Quem escreveu esse texto

Rita Palmeira

É crítica literária e curadora da livraria Megafauna, em São Paulo.

Matéria publicada na edição impressa #8 dez.17-fev.18 em junho de 2018.