Literatura,

Árvore da vida

Entre o testemunho e a invenção, romance escrito por pai e filho discute memória, trauma e seus usos literários

31jul2023 | Edição #72

Na cultura pop, o termo prequel se refere a uma parte da narrativa — filme de uma saga, por exemplo — que mostra eventos anteriores à parte principal da história, contando a infância do herói ou justificando a obsessão do vilão pelo protagonista, por exemplo. De certa forma, Meu pai e o fim dos judeus da Bessarábia, escrito pelo mineiro Jacques Fux e por seu pai Samuel Fux, é uma prequel na trajetória literária do mais novo, autor de Herança, sua obra mais recente, e de Antiterapias, vencedor do prêmio São Paulo de 2013.

Isso porque Jacques tem na família tanto uma pista de decolagem para a sua ficção quanto um laboratório no qual investiga os temas da identidade judaica e de traumas pessoais e intergeracionais. A perspectiva aqui é a de Samuel Fux, que fala dos antepassados vindos da Bessarábia, região hoje localizada entre a Moldávia e a Ucrânia. Ghers Fux viveu em meio à perseguição antissemita na terra natal e fixou-se em Belo Horizonte, onde nasceram seu filho Samuel e seu neto, Jacques. Fez o que pôde para isolar as memórias do outro lado do Atlântico, fazendo do silêncio parte da vida em família. É sobre as lacunas transmitidas de pai para filho que Samuel se debruça ao rememorar a figura paterna.

Há um sentimento de inventário, nem que seja para colocar sob uma lupa aquilo que falta

O passado perdido está fincado em um momento-chave da história judaica no século 20: o pogrom de Kishinev, em 1903. Na cidade que atualmente é a capital da Moldávia (e cujo nome hoje é em romeno, Chisinau), 49 judeus foram mortos e centenas foram vítimas de violência física, estupros e saques. Os Fux estavam entre os que começaram a pensar em ir embora dali naquele momento. A imigração em massa é, para a historiografia, anonimato. São muitas famílias parecidas: aos montes, vítimas de perseguição embarcaram em navios e, uma vez no Brasil (ou na Argentina, nos Estados Unidos), dedicaram-se à manufatura e ao comércio. Os casais se conheceram em festas da comunidade judaica organizadas para esse fim. Cada vez mais, cabe à literatura preencher com subjetividade essas trajetórias até então generalizantes.


Meu pai e o fim dos judeus da Bessarábia, escrito pelo mineiro Jacques Fux e por seu pai Samuel Fux, é uma prequel na trajetória literária do mais novo, autor de Herança, sua obra mais recente, e de Antiterapias, vencedor do prêmio São Paulo de 2013

Olhando com mais profundidade para essa prequel, está na voz de Samuel o alicerce do ótimo As coisas de que não me lembro, sou, livro de Jacques publicado em 2022 pela Editora Aletria e ilustrado por Raquel Matsushita. Nessa obra, Jacques diz não se lembrar de muito de sua vida judaica, como da circuncisão aos oito dias de vida ou das aulas preparatórias de hebraico para o bar mitsvá, de carinhos e momentos tão afetuosos quanto banais, de eventos marcantes e outros dos quais ninguém costuma recordar. E conclui dizendo que tudo aquilo que se quer lembrar ou esquecer fez dele quem é. Samuel é aquilo que seu pai não lhe contou e, também, os pequenos momentos da infância dos quais não se recorda, e afirma: “Não sei de nada nem desconfio de muita coisa”. Essa frase cairia igualmente bem no livro anterior de Jacques.

Um ponto curioso é que Samuel adota um tom bem-humorado ao chamar de nazista, por exemplo, uma chuva que o incomoda, algo que parece remeter ao bordão “malditos nazistas”, da obra de estreia de Jacques, Antiterapias, sugerindo a genealogia desse tom. Quase uma referência, aqui passa a soar como piada interna que surgiu antes na narrativa de Jacques feito uma piscadela para o pai, ou uma antevisão de que a escrita literária seria um laço entre eles.

Parentescos

Um dos conceitos mais difundidos nos estudos a respeito da transmissão de experiências de trauma é o de Marianne Hirsch, que criou o termo “pós-memória” para falar dos processos vividos por descendentes das vítimas do Holocausto. Segundo ela, a pós-memória é em si representação, pois decanta nos indivíduos provocando atos de imaginação e criação. O que observamos em Meu pai e o fim dos judeus da Bessarábia é um desses processos, com um narrador que chama sua criação de romance e conclama “memórias inventadas”, ainda que fale com franqueza das lacunas da história e das incertezas, com uso recorrente do “talvez” e do “será que”. Olhando para o livro como relato ou testemunho, há um sentimento de inventário, um desejo de catalogar e organizar, nem que seja para colocar sob uma lupa aquilo que falta.

Não é fortuito que a narrativa dos Fux remeta à pós-memória, uma vez que Hirsch toma como base Maus, de Art Spiegelman. Nessa hq, o autor ouve do pai a sua história na Polônia, passando por guetos, deportações e campos de concentração. Os quadrinhos retratam também o presente -— pai idoso e filho adulto -— nos sucessivos encontros que produzem os relatos. Os momentos de horror da vida do pai se convertem na criação máxima do filho, extraídos e expostos com a força do desenho. Em Meu pai e o fim dos judeus da Bessarábia, o impulso é outro, há uma dor originada no soterramento involuntário das memórias e na impossibilidade de recuperá-las. As obras se diferem na sua relação com o ficcional: enquanto os Fux falam em invenção, e até mesmo a orelha traz a classificação da narrativa como romance, Spiegelman escreveu ao New York Times criticando o jornal quando seus quadrinhos figuraram na lista de mais vendidos na categoria de ficção. Em todo caso, em ambos há pais e seus filhos homens criando uma corrente viva que une passado e presente, aliando eventos marcantes, pequenos consertos, vida doméstica e gostos em comum, por vezes vacilantes em relação ao que pode ser narrado. Nesse aspecto, o romance dialoga com A cena interior: fatos, livro do francês Marcel Cohen publicado no Brasil pela editora 34, no qual a trajetória de vítimas do Holocausto e pequenos objetos presentes em fragmentos de história emolduram um belo ensaio sobre as lacunas desse mesmo passado.

Pertencimento

Ao assinarem o livro conjuntamente, Samuel e Jacques Fux levantam a pergunta: a quem pertence uma história? Se assumimos o filho como autor, ele em parte criou a voz do pai enquanto personagem. Tomando a autoria conjunta, ambos inventaram aquela voz que narra e que, mesmo ficcional, se mostra originária de um autor real. Enquanto história coletiva, da família ou da imigração judaica saída da Bessarábia rumo ao Brasil, ela se torna exemplar e, portanto, o estilo seria eclipsado por sua capacidade de ser lida como trajetória paradigmática. 

Meu pai e o fim dos judeus da Bessarábia permanece entre o testemunho da geração de filhos de imigrantes, que ainda carece de mais registros, em especial no Brasil, e um exercício literário que toca em diversas questões em ebulição na literatura contemporânea, a começar pela própria memória, o trauma, e seus usos literários. No final, a história não pertence a ninguém e se mantém igualmente viva, entre autores e leitores, por todos. Como ocorre com frequência, o questionamento interessa mais do que uma resposta definitiva. 

Quem escreveu esse texto

Thais Lancman

Escritora e crítica literária, publicou Pessoas promíscuas de águas e pedras (Patuá).

Matéria publicada na edição impressa #72 em julho de 2023.