Literatura,
A obesidade da realidade à ficção
Isabela Figueiredo e Roxane Gay abordam, de pontos de vista muito distintos, os traumas do relacionamento com o corpo
15nov2018 | Edição #8 dez.17-fev.18“Não era conforme.” É assim, ao negar o ajuste à norma, que a narradora de A gorda define o próprio corpo. De forma semelhante, a autora de Fome alude, com ironia, ao problema dos “corpos indisciplinados”. Os dois livros esboçam o retrato de uma coletividade que molda, controla e insulta as formas alheias. Não obstante o que têm em comum, relacionar A gorda, um romance, e Fome, um testemunho, é tarefa delicada. Não se pode perder de vista as diferenças entre a narrativa que reivindica o registro literário e a que procura articular, ainda que de um ponto de vista subjetivo, a realidade.
O subtítulo, Uma autobiografia do (meu) corpo, evidencia o que está no centro de Fome. O que importa é a relação da autora Roxane Gay com o próprio corpo, além da relação do corpo com um entorno sempre hostil. Sem meios-termos, Gay mostra que a imagem atribuída a pessoas gordas é invariavelmente negativa: “O corpo obeso é a expressão do excesso, da decadência e da fraqueza”.
Ao contrário do que ocorre em Fome, o corpo não ocupa, ou não de maneira explícita, o lugar de destaque no romance de Isabela Figueiredo. Sabemos que a aparência da protagonista, Maria Luísa, condiciona boa parte das relações que ela estabelece. Ainda assim, como ruído de fundo ou sombra, o corpo tende a permanecer em segundo plano. Das coxias, ele é convocado vez ou outra para o centro do palco.
No início do livro, Maria Luísa pondera os resultados da cirurgia bariátrica a que se submeteu. A narrativa retrocede alguns anos e, entre idas e vindas, acompanhamos a protagonista da adolescência à meia-idade. Nos trechos em que é citado, o corpo surge como alvo de deboche e reprovação. Constantemente julgada, ela diz se sentir “uma massa disforme de carne sem valor”.
Em entrevistas, Figueiredo declarou que há algo de autobiográfico no livro. Assim como a autora, a narradora nasceu em Moçambique. Enviada para um colégio interno em Portugal, Ana Luísa passa uma década vivendo longe dos pais, até que os três voltam a morar juntos no apartamento no qual, muitos anos depois, ela se vê sozinha. Os capítulos do romance são divididos como os cômodos do lugar, evocando, na medida em que a memória transita por um e outro, lembranças variadas. A narração e a trama, porém, que pouco fogem do óbvio, dão a sensação de um vagar sem objetivo por uma casa cujo interior é semelhante ao de tantas outras.
‘Fome’ é um relato pungente que reverbera por muito tempo. Já ‘A gorda’, com suas passagens estéreis que metáforas não disfarçam, não convence
Roxane Gay, uma das vozes mais originais do feminismo atual, se expõe de forma corajosa e brutal em Fome. Ao esclarecer a relação conflituosa que desenvolveu com seu corpo, ela relata o estupro de que foi vítima aos 12 anos. Para sobreviver, buscou consolo na comida. O título do livro não se refere apenas a uma necessidade física: a autora trata sobretudo de desejos e carências que precisam ser saciados. “Nós somos famintos.” A partir daí, mais do que quebrar o silêncio que envolveu por muitos anos um episódio terrível, e mais do que a disposição de relatar as dificuldades que marcam o dia a dia de pessoas como ela, Gay reivindica o controle da própria narrativa. É isso, em parte, o que nos parece tão poderoso em Fome.
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Construímos e moldamos boa parte de nossa personalidade a partir do olhar de um outro sobre nossas características. Uma reação positiva ou negativa é capaz de fundamentar ou abalar a noção de nosso valor. No caso de pessoas gordas, alvo constante de reprovação, a formação do autorrespeito é prejudicada. “Precisamos ter mais consideração com as realidades dos corpos alheios”, diz Roxane Gay. Ela mostra como, com a disseminação de reality shows sádicos e da publicidade de produtos para perda de peso, reproduzimos a lógica que afirma que a autoestima e o sucesso são consequências diretas de um corpo magro. É a propagação e aceitação de “mensagens culturais nocivas”. Nelas, “o ódio explícito por pessoas gordas é vigorosamente tolerado e incentivado”.
Como no best-seller Má feminista, em que identifica e exalta as próprias idiossincrasias, Gay não procura eliminar as contradições que surgem ao longo de Fome. Embora reconheça a importância de resistir à pressão normativa a que corpos como o seu estão sujeitos, ela não simula uma autoaceitação que está longe de experimentar. Em vez disso, ao descrever a dificuldade de se movimentar num mundo que não costuma acolher pessoas obesas, Gay reitera o desejo de emagrecer. Fome se equilibra, assim, na dolorosa tensão entre a vontade de ser reconhecida, e portanto de continuar a mesma, e a tentativa de se ajustar ao que hoje nos parece o padrão.
A gorda escorrega no mal da literatura contemporânea, quando o vazio de um personagem se torna o vazio do próprio livro. Recursos que deveriam reforçar a ideia de solidão e carência da protagonista, realçando a aridez de um cotidiano em que os laços afetivos são raros ou tênues, terminam por evidenciar a insuficiência da narrativa. Tanto quanto uma escolha estética, são danos colaterais graves. Através de uma epígrafe de Henry Thoreau, a autora ou narradora ameaça ministrar aos leitores “uma forte dose” de si mesma. Ela tem necessidade de que a “aturem”, “por mais enfado” que isso possa causar. Enfado é exatamente o que o romance provoca.
É preciso avaliar os dois livros dentro daquilo a que se propõem. A despeito das diferenças de registro, que aqui ficam mais evidentes do que nunca, Fome é um relato pungente que reverbera por um bom tempo. A gorda, como literatura, com suas passagens estéreis que metáforas e alusões não disfarçam, mas antes acentuam, não convence.
Matéria publicada na edição impressa #8 dez.17-fev.18 em junho de 2018.
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