Literatura em língua francesa,
O bazar de Alain Mabanckou
Livro de autor congolês sobre imigrante africano em Paris tentando seguir a carreira de escritor deu origem a peças de teatro e álbum musical
22jan2021 | Edição #41 jan.2021Mais de uma década depois de ter sido lançado em francês, em 2009, Black Bazar, de Alain Mabanckou, ainda escancara a realidade das divisões que vivemos hoje com um humor que nos faz sorrir amarelo a cada linha. A narrativa do sétimo romance do escritor franco-congolês é um pedaço da sua própria história: um imigrante africano em Paris quer escrever seu primeiro livro, apostando seguir nessa nova profissão. Mas a sua “cor de origem” (expressão que também é apelido da personagem que encarna sua “ex” na obra) parece ser o primeiro e principal obstáculo a ser conquistado — aqui me permito o jogo de palavras porque é esse rompimento amoroso que impulsiona o personagem-narrador a escrever.
“[Mas os brancos] foram educados para isso, já nós, os negros, não é para o nosso bico, a escrita. Aqui é a oralidade dos ancestrais, os contos da selva e da floresta”, lhe diz um conhecido. “Nosso problema é que não inventamos a imprensa e a Bic, e seremos sempre os últimos sentados no fundo da classe imaginando que poderíamos escrever a história do continente negro com nossas lanças. Você me entende? Além disso, temos um sotaque bizarro, isso se lê também naquilo que escrevemos; ora, as pessoas não gostam disso”, completa o “colega”, na cena do prólogo do livro.
(Parênteses: leia esse prólogo no início do livro, como propõe o autor, mas, quando o terminar, volte a relê-lo. Parece que ele foi feito para ser o início e o fim do romance.)
A voz e os pensamentos do personagem principal, apelidado de “Bundólogo” — referência ao fato de o protagonista julgar as mulheres pelo seu derrière —, lidam com os preconceitos, o racismo, o sexismo e todos os outros “ismos” que vivemos ou fazemos outros viverem nos gestos cotidianos mais simples. E com uma audácia que parece leve ou quase pueril.
“Tínhamos discussões sérias sobre o que ela considerava verdades universais em relação à nossa condição de negros, sendo que eram na realidade clichês em preto e branco”, diz o narrador sobre as conversas com “Cor de Origem”, apelidada assim pelo tom profundamente escuro de sua pele.
Mabanckou, em entrevista, diz que muitas de suas obras giram em torno da missão de trazer referências de outros livros, histórias e autores. Black Bazar tem uma “bibliografia” primorosa encaixada no fio narrativo — vale anotar para ler depois.
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Nascido em 1966 na portuária Pointe-Noire, capital econômica do Congo francês (pequeno Congo, como o protagonista o chama), Mabanckou, aos 22 anos, foi fazer pós-graduação em direito na França. Trabalhou por dez anos como advogado, até lançar, em 1998, Bleu, Blanc, Rouge, pela editora Présence Africaine, pelo qual ganhou seu primeiro prêmio literário.
De lá para cá foram doze romances, sete livros de poesia, três obras infantis e nove ensaios, traduzidos para mais de quinze línguas, e quase duas dezenas de premiações literárias, entre elas o Renaudout e a posição de finalista do Man Booker Prize, além de homenagens pelo conjunto da obra.
Talvez tenham sido os prêmios, os milhões de leitores, o sucesso editorial que o levaram a ser o primeiro escritor convidado, em 2016, pelo prestigioso Collège de France a inaugurar uma cadeira de criação artística (desde sua criação, em 1532, ele é apenas o quarto africano a ser convidado para fazer parte do corpo docente). Mas pode ter sido o fato de Mabanckou ter deixado a França pelos Estados Unidos, onde vive desde 2002 e é professor, desde 2006, de literatura francófona na Universidade da Califórnia (UCLA) em Los Angeles.
O protagonista lida com o racismo, o sexismo e todos os outros ‘ismos’ vividos nos gestos cotidianos
Sua aula inaugural no Collège de France, intitulada “Lettres noires: des ténèbres à la lumière” (Letras negras: das trevas à luz), disponível no YouTube, aconteceu mesmo depois de ter recusado, dez anos antes, o convite para ser “embaixador” da política de francofonia do governo. “Não acredito na institucionalização dessa francofonia. Para mim ela é apenas uma maneira mais leve de continuar o processo de colonização”, disse em uma entrevista à imprensa. Em um artigo publicado em 2006 no jornal Le Monde para explicar sua recusa, Mabanckou afirmou que “a francofonia não é propriedade das letras francesas”. Para ele, o que existe é apenas a língua francesa que é falada no Quebec, no Congo, no Senegal, no Haiti e na França. E a língua viva tem sotaques, palavras novas, ritmos e cores da terra onde está.
Pessoas Elegantes
É essa posição anticolonial que ele declara o tempo todo em Black Bazar, com um sarcasmo que nos diz para estarmos preparados para ler as entrelinhas, como devemos fazer na leitura de O vendido (Todavia), de Paul Beatty. Aliás, os dois autores poderiam ter participado da mesma mesa na Festa Literária de Paraty, mas vieram em anos diferentes — Beatty veio em 2017, Alain Mabanckou, em 2018.
O aspirante a escritor e “bundólogo” (dizem as más-línguas!) parece ser, no mínimo na aparência e na indumentária elegante, um dos alter egos de Mackanbou. No livro, ficamos sabendo de um movimento no Congo em que os homens se vestem com cores e “desenvoltura” para expressar sua identidade e sua liberdade em um país que vive há tantas décadas sob a opressão de regimes ditatoriais. São os participantes da SAPE, a Sociedade de Ambientadores e de Pessoas Elegantes, da qual o autor veste o “uniforme” e defende a causa na vida real sempre que pode.
Em Rumeurs d’Amérique (Rumores da América), seu livro de ensaios recém-lançado, no qual escreve pela primeira vez sobre o país que o acolheu há quase vinte anos, ele dedica um capítulo inteiro a esse movimento. Seu alfaiate Jocelyn Armel “Le Bachelor”, tem loja em Paris — e, dizem, uma fila de mulheres esperando que ele lance a versão feminina da SAPE.
Desde seu lançamento, Black Bazar deu origem a várias montagens teatrais de sucesso na França e nos Estados Unidos, além de um álbum musical, produzido em 2012 pelo próprio Mabanckou, de rumba congolesa tradicional. Black Bazar, visto assim, torna-se o fio da meada de uma coleção de possibilidades artísticas que nascem do pensamento do autor. Que, usando a voz do seu personagem principal, deixa sempre claro ao leitor: “Eu escrevo assim como eu vivo, passo da água para o vinho e do vinho para a água, isso também é viver, caso não saiba”.
Este texto foi realizado com o apoio da Embaixada da França.
Matéria publicada na edição impressa #41 jan.2021 em dezembro de 2020.
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