Laut, Liberdade e Autoritarismo,

A outra face da democracia

Ensaio de historiador francês mostra como organizar a desconfiança em favor da soberania popular

01jan2023 | Edição #65

Na obra inaugural de sua tetralogia sobre as transformações das democracias contemporâneas, traduzida em boa hora para o público brasileiro, o historiador Pierre Rosanvallon joga nova luz sobre o debate que pinta o declínio democrático em um horizonte sombrio. Sua tarefa é desfazer o aparente paradoxo entre a disseminação global da democracia como forma de governo e a frustação popular com seus fracassos a partir da teorização da “contrademocracia”, que não se coloca como antônimo de democracia nem como fórmula de matriz liberal vertida à limitação ou ao controle de autoridades eleitas. A contrademocracia é compreendida como a outra face da democracia, complementar à dimensão puramente eleitoral e orientada por critérios diferentes de legitimidade.

Abordagens convencionais apresentam diagnósticos da “crise da representação” a partir das mazelas dos mecanismos eleitorais. Crescentes níveis de desconfiança seriam sintomas de tais patologias. Rosanvallon inverte a equação, afirmando a inevitabilidade da queda dos níveis de confiança diante da complexificação social, mas percebendo nisso um potencial democrático para a organização da desconfiança. Desse modo, a contrademocracia não tem sentido negativo, apontando para a construção de políticas públicas e institucionais a partir de uma política alternativa. O conceito democrático se expande a partir de uma articulação dual da soberania popular, incorporando uma nova dimensão ativa que compreende poderes não ancorados no voto popular.

As práticas contrademocráticas focalizam três ângulos da confiança como instituição invisível: a dimensão moral de ampliação qualitativa da legitimidade; a dimensão de cuidado do bem comum; e o papel temporal de projetar a natureza contínua dessa legitimidade. Daí surgem os três tipos de contrademocracia que estruturam o livro: os poderes de vigilância, as formas de impedimento e as provas de um julgamento. Se a face eleitoral é episódica e limitada no tempo, a face contrademocrática enriqueceria a democracia a partir de poderes indiretos que expressam a soberania de forma contínua pelo corpo social.

Experiências virtuosas

Rosanvallon resgata experiências virtuosas de um povo-vigilante que exerce papel fiscalizatório ativo. Canalizar de forma positiva a fiscalização, a denúncia e a notação seria uma postura construtiva para atenuar “disfuncionamentos do regime representativo”. O cidadão vigilante trabalha para moderar e limitar o poder, especialmente a partir de organizações externas ao Estado. Esses agentes contestatórios se valem de meios diversos, mais ou menos institucionalizados, como a multiplicação de autoridades independentes ou de ativismos fragmentados na internet.

A atualidade da obra é marcante. O Brasil de 2022 surge como laboratório a céu aberto

De outro lado, um povo-veto se organiza a partir de coalizões negativas que multiplicam poderes de sanção e de impedimento. Esse papel “se torna essencialmente estruturado a partir da confrontação permanente a diferentes categorias de veto provindas de grupos sociais, de forças políticas ou econômicas”, caracterizando as condições de mudança como dependentes dessas capacidades de bloqueio. Em uma dimensão negativa da soberania, se opera um tipo indireto de atuação, a partir do qual um “cidadão negativo” é convertido em “substituto de democracia direta”.

O povo-juiz, por sua vez, se orienta por uma democracia de imputação que coloca no centro a função de julgamento, com toda sua teatralidade e suas propriedades qualitativamente distintas da decisão pelo voto. O autor foge da caracterização usual da “judicialização do político” como consequência normativamente negativa do desencanto com mecanismos eleitorais e apresenta essa faceta como mecanismo democrático complementar orientado ao julgamento como uma espécie peculiar de tomada de decisão. O desafio aqui é canalizar a desconfiança por meios institucionais que se acomodem dentro das virtudes republicanas.

O resgate da cidadania

Esses modos indiretos de soberania extrapolam o sentido tradicional das teorias democráticas. A essência da tese é que “democracia eleitoral-representativa e contrademocracia dos poderes indiretos devem ser apreendidas conjuntamente para identificar em sua complexidade o movimento efetivo de apropriação social do poder”. Esse novo olhar permitiria fugirmos da imagem corrente de declínio da cidadania em favor de um processo de mutação fragmentária. O risco maior não é propriamente uma cidadania passiva, mas uma impolítica que alargue distâncias entre a sociedade civil e o nível institucional. Reabilitar a desconfiança não constitui tarefa simples. Aqui está encarnado o maior desafio: escapar à tentação populista, compreendida por Rosanvallon como deturpação contrademocrática. Canalizar a tensão e a contestação permanentes das democracias reais a partir de mecanismos visíveis é a tarefa fundamental para consolidar a dupla avenida democrática.

A atualidade da obra é marcante. O Brasil de 2022 surge como laboratório a céu aberto. Entre usos e abusos, mecanismos contrademocráticos jamais foram tão centrais em nossa combalida democracia. Ao mesmo tempo, o atual contexto pode explicitar o principal flanco da obra. Ao privilegiar como objeto de estudo a contraface da autorização popular, dentro de sua perspectiva dualista da soberania, Rosanvallon parece deixar de lado o papel gravitacional da legitimidade eleitoral mesmo sobre as ferramentas da contrademocracia mais distantes do voto. O mais importante pleito eleitoral da terceira república colocou em jogo não apenas uma disputa entre projetos políticos ou o bloqueio de abusos governativos. Há evidências de que a própria preservação dos poderes de vigilância estava fragilmente condicionada ao resultado de 30 de outubro. Rosanvallon amplia teoricamente o repertório de legitimidades; nos ensina que o voto é apenas uma das dimensões democráticas. Ainda assim, em regimes contemporâneos que se veem diante de ameaças antidemocráticas, não há como se abdicar da disputa eleitoral como o núcleo duro da democracia.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Daniel Bogéa

Advogado e pesquisador, é doutorando em ciência política na USP.

Matéria publicada na edição impressa #65 em outubro de 2022.