Laut, Liberdade e Autoritarismo,
O Estado que mata
Pesquisadora mostra como o direito, organizações do sistema de Justiça e narrativas blindam as polícias da responsabilização por seus crimes
18abr2022 | Edição #57Quando os corpos de oito pessoas mortas foram arrastados para fora de um manguezal em São Gonçalo, Rio de Janeiro, no dia 21 de novembro de 2021, moradores e moradoras da região já sabiam que esse era um dos resultados da ação da Polícia Militar (PM) no Complexo do Salgueiro, que ocorrera no dia anterior em aparente resposta à morte de um policial. Segundo o Instituto Fogo Cruzado, o ciclo de violência na região metropolitana do Rio de Janeiro contou com 4.653 tiroteios — em média, 13 por dia, 1.084 pessoas mortas, 1.014 feridas e 82 agentes policiais mortos(as) somente em 2021. Dessas pessoas, ao menos 255 morreram em uma das 59 chacinas do ano relacionadas a operações policiais na região. Esses são números alarmantes, ainda mais considerando que desde abril de 2020 as operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro deveriam estar suspensas pelo Supremo Tribunal Federal (ADPF 635), salvo em situações excepcionais.
O inquérito, o processo judicial e a responsabilização nascem com resultado certo: a blindagem institucional da ação policial
O problema não é apenas carioca, mas brasileiro: segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2020, ao menos 6.416 pessoas morreram em decorrência de intervenções policiais pelo país. E, para cada policial morto em serviço ou fora de serviço, foram mortas 33 pessoas, em média, com grande variação entre estados (chegando a 210 pessoas em Goiás e 186 no Paraná). A maior parte das vítimas está em grandes centros urbanos.
Se os números são brutais e conhecidos, por que pouco é feito? E por que agentes policiais não são responsabilizados? Poliana da Silva Ferreira responde a essas perguntas olhando para o papel do direito e das organizações do sistema de Justiça em seu livro Justiça e letalidade policial, lançado pelo Selo Plural da editora Jandaíra, voltada a “obras necessárias para a compreensão das discriminações estruturais do Brasil”. O livro é resultado da pesquisa de dissertação de mestrado de Ferreira, na qual a autora conduz profundo estudo de um caso real, com final comum e “já conhecido”: a “absolvição dos policiais”. O caso ilustra como o direito e as organizações da Justiça ajudam a blindar “a polícia que mata” da maior parte das formas de controle e responsabilização.
Estudo de caso
O trabalho da autora tem como ponto focal o assassinato de dois homens negros, sob a alcunha anônima de João e Eduardo, por policiais militares em São Paulo em uma ação policial. Reconstruindo as manchetes e a linguagem utilizada por veículos de comunicação, Ferreira expõe como, desde as primeiras linhas publicadas sobre o caso, se inicia o processo de incriminação de João e Eduardo — de “suspeitos”, estes viram “bandidos” — e de blindagem da polícia que mata: sua ação, narrada em verbos heroicos, desculpa seus atos letais: os policiais surpreenderam “os bandidos”, que revidaram, “trocaram tiros com a polícia” e “acabaram mortos”.
O caso, contudo, é inusitado. Dias depois do fato, outro veículo de comunicação publicou que um dos policiais que disparou tiros, movido por culpa religiosa, teria alterado a versão inicial de “legítima defesa” para declarar que, na verdade, ele e outro policial assassinaram Eduardo quando este já se encontrava desarmado e rendido e posteriormente manipularam a cena do crime. A maioria das mortes causadas por ação policial é justificada assim: uso adequado da força diante da suposta resistência violenta à prisão em flagrante. Essa versão dos fatos é dada pelos próprios policiais que participam das ações policiais e que são, em geral, as únicas testemunhas dos casos.
O policial do caso narrado por Ferreira, contudo, abertamente afasta as hipóteses que excluiriam sua culpabilidade e se declara intencionalmente responsável pela morte de um dos homens. Esse plot twist, além de trágico, é importante, pois revela mais um dos fios da blindagem de responsabilização da polícia. A confissão deveria convencer autoridades policiais, Ministério Público, juízes e o próprio júri da responsabilidade dos policiais diretamente envolvidos com os assassinatos, além de gerar ação de controle mais abrangente sobre todo o grupo de policiais envolvido no caso.
A incriminação judicial da vítima por sua morte prenuncia o resultado do caso que absolve os policiais. Os negros já nascem incriminados
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Mas sabemos o desfecho da história antes mesmo de Ferreira adentrar nos meandros do caso, seus documentos e personagens — os policiais denunciados, incluindo o réu confesso, foram absolvidos. Não importaria aqui a intenção de matar, clara e declarada. O inquérito policial, o processo judicial e a responsabilização tanto criminal quanto administrativa e disciplinar já nascem com resultado certo: a blindagem institucional da ação policial.
Blindagens
Já no primeiro inquérito se opera o modo padrão de blindagem. Ferreira destaca, por exemplo, como a área onde foram encontrados os corpos de João e Eduardo — chamados nos documentos da investigação policial de “autores/vítimas” — foi preservada para a investigação por um sargento diretamente envolvido na abordagem policial da noite anterior. Esse primeiro inquérito conclui pela “regularidade” das ações praticadas e de pronto as declara “amparadas por causa excludente de ilicitude”.
A confissão do policial, contudo, reabre as investigações, que indicam a responsabilidade direta de dois policiais na execução de Eduardo e de outros dois policiais pelo uso excessivo de força na ação que resultou na morte de João. A partir do inquérito que apontava quatro culpados, o Ministério Público decide denunciar apenas os dois policiais diretamente envolvidos no assassinato confesso, enquanto requer o arquivamento da denúncia contra os outros dois envolvidos na morte de João. Mais um momento de blindagem.
O mais provável é que as famílias das vítimas renunciem a qualquer busca por justiça sob receio de retaliação
Seguindo, o julgamento dos policiais denunciados ocorre de forma separada — a juíza decide desmembrar os casos, pois a confissão de um dos policiais incriminaria o outro que o ajudou na execução e mantinha sua narrativa de “legítima defesa”. Mais blindagem. E ambos os policiais são absolvidos pelo júri, além de livres de responsabilização administrativa por terem se exonerado da corporação antes de concluído o processo correcional. Ademais, Ferreira não encontra nenhuma ação de responsabilização civil contra o Estado ou os policiais. O mais provável é que as famílias das vítimas, já ausentes dos julgamentos, renunciem a qualquer busca por justiça, ainda que civil, sob receio de retaliação. Blindagem final.
Culpados por nascença
A narrativa de Ferreira é poderosa e prende a atenção de especializados e leigos. Ao analisar o caso seguindo sua ordem cronológica, ela desvenda como as narrativas que eximem a polícia que mata começam a ser construídas desde os primeiros momentos e se mantêm na interpretação das normas processuais e administrativas, “imunizando” policiais e a corporação policial de responsabilização. Trata-se, nas palavras da autora, de “indiferença como estratégia de reação à letalidade policial” e de omissão ativa do Estado em construir parâmetros claros e controláveis de uso da força. Mas essas narrativas também são anteriores aos fatos dos casos e construídas na articulação estrutural entre direito criminal e racismo.
Em um momento infame do caso narrado no livro, a juíza questiona a testemunha que insistia ser incapaz de reconhecer Eduardo: “O senhor se recorda se o assaltante era negro?”, ao que se segue a resposta: “Quase negro, um mulato”. O “assaltante”, denominado pela juíza, era justamente a vítima assassinada pela ação policial. A incriminação judicial da pessoa e da pele antecipa a “culpa” de Eduardo por sua própria morte e prenuncia o resultado do caso que absolve os policiais. Eduardo e João já nascem incriminados. Trata-se de mais uma blindagem, dessa vez sociorracial, às ações da polícia que mata.
Editoria especial em parceria com o Laut
O LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.
Matéria publicada na edição impressa #57 em fevereiro de 2022.
Porque você leu Laut | Liberdade e Autoritarismo
Onde a ditadura nunca acabou
Autor entrelaça a rotina de torturas e execuções nas favelas brasileiras à transição incompleta para a democracia
DEZEMBRO, 2024