Laut,

Liberalismo travesti de favela

Antropólogo encontra nas vidas de pessoas queer da Rocinha uma outra concepção de liberdade

25ago2023 | Edição #73

Liberdade – essa palavra
que o sonho humano alimenta:
que não há ninguém que explique,
e ninguém que não entenda!

Cecília Meireles, “Romanceiro da Inconfidência”

Os moradores das favelas brasileiras são livres? É possível falar em liberdade quando se vive em um espaço identificado com a exclusão, a violência, a pobreza e a falta de oportunidades? Assumimos, usualmente, que a população das favelas, subúrbios e quebradas do Brasil tem oportunidades muito limitadas de levar uma vida digna. O antropólogo Moisés Lino e Silva partia dessa premissa quando começou sua pesquisa de campo na Rocinha, uma das maiores favelas do Brasil, em 2009. Presumia, então, que o trabalho etnográfico poderia contribuir para dar visibilidade às diversas formas de opressão a que estão submetidas pessoas marginalizadas em nossas grandes cidades.

Ao conhecer Natasha Kellen Bündchen, uma “travesti liberada” que deixou o Ceará para ganhar a vida no Rio de Janeiro, no entanto, Lino e Silva se viu diante de expressões e práticas de liberdade que até então desconhecia. E que tampouco serão familiares para a grande maioria daqueles que nunca viveram em uma favela e que foram socializados em um mundo marcado pelos valores liberais.
O trabalho etnográfico de Liberalismo minoritário: vida travesti na favela nos traz não apenas um bonito e singelo relato do cotidiano de Natasha e outras pessoas queer na favela, mas apresenta também um desafio teórico ao “liberalismo normativo”. Ao nomear formas marginalizadas de liberdade como liberalismo, Lino e Silva realiza um movimento de descolonização da tradição liberal, desestabilizando um conceito que nos é estranhamente familiar. Nesse deslocamento, o antropólogo expressa apreço pelos “liberalismos minoritários”, colocando-os em pé de igualdade com as liberdades valorizadas pela cultura política ocidental.

Nas frestas

Luiz Antonio Simas, o historiador de nossas encruzilhadas, costuma comparar o Brasil oficial a uma espécie de muro. Nas frestas desse muro, observa Simas, existem corpos e valores que foram subalternizados pela experiência histórica da exclusão. Nestes espaços para os quais foram retirados, porém, construíram outros sentidos de vida. Esse Brasil diverso, transgressor, inventor, contestador e plural é o Brasil que se manifesta na etnografia de Lino e Silva.

Um projeto de país ocidental, civilizado, cristão, foi construído de maneira a abafar as presenças de corpos e valores que não se enxergam nesse espelho. Sujeitos “minoritários” — não no sentido numérico, mas por se encontrarem em posições particulares em certo jogo de poder —, como os interlocutores do antropólogo na Rocinha, operam em uma dimensão que incomoda os habitantes da cidade formal.

Um Brasil diverso, transgressor e plural é o que se manifesta na etnografia de Lino e Silva

Liberalismo minoritário, que apresenta as narrativas de pessoas reais em um espaço que geralmente só acessamos por meio da ficção, evidencia um aspecto pouco explorado na literatura. Lino e Silva chama a atenção para uma história não oficial do Brasil. Mais além de onde os olhos alcançam, há um país que se realiza nas brechas daquele projeto de exclusão, um Brasil que reconstrói outros sentidos de vida que não os do individualismo tacanho ou do consumismo como signo do bem viver.

O que talvez não esteja claro no livro, contudo, é como esse liberalismo minoritário poderia colonizar (ou descolonizar) a cultura e a prática política enraizadas na tradição filosófica ocidental. Por certo que a própria existência de Natashas e do PAFYC (acrônimo formado pelas iniciais de um grupo de adolescentes queer que vivem de “causar” na favela da Rocinha) é, em si, um ato político. Mas talvez fosse interessante pensar em maneiras de politizar esse liberalismo de favela de modo a causar transformações no asfalto.

Politização e idealização

Em alguns momentos do trabalho, há certa idealização em relação à vida das pessoas na favela e às formas de liberdade que elas experienciam. A maneira pela qual essas liberdades minoritárias são descritas e valorizadas não considera o quanto elas podem ser precárias e o quanto dependem de condições que são absolutamente contingentes (como o “dono do morro” que, na Rocinha, impõe uma lei anti-homofobia).

O livro parece idealizar também as condições de vida de travestis e transexuais no Brasil e fora dele. A violência contra esses corpos se materializa tanto em espancamentos e assassinatos, tão comuns em nosso país, quanto no acesso precário a serviços de saúde e na dificuldade de se inserir no mercado de trabalho. Ao relatar a morte de Natasha e das fundadoras do PAFYC, adolescentes ou apenas recém-chegadas à idade adulta, o antropólogo sustenta que esse destino, que tenderíamos a considerar trágico, poderia ser entendido como um grito de liberdade. 

Para Lino e Silva, os liberalismos minoritários e as experiências LGBTQIA+ na favela reconfiguram as próprias ideias de vida e não vida, em parte porque seu diagnóstico se baseia em uma posição normativa distinta daquela predominante em nosso imaginário. A morte prematura, nesse aspecto, não seria apenas uma questão de necropolítica. As vidas das personagens retratadas nessa etnografia não se orientavam para o futuro, o que lhes conferia uma capacidade rara de lidar com a morte prematura. Foi só mais tarde que o antropólogo percebeu que sua tentativa de “salvar” Natasha se sustentava, na verdade, em uma concepção distinta do que torna uma vida digna de ser vivida.

No capítulo curiosamente intitulado “Escravidão romana”, o antropólogo visita um espaço de prostituição em Roma conhecido como Mattatoio (“matadouro”), onde conhece Angel, uma travesti nascida na Rocinha.

A maneira como essas liberdades minoritárias são descritas não considera o quanto podem ser precárias

No relato de Angel, há tanto a realização do desejo de ir para a cama com “homens gostosos” e que lhe pareceriam em outro contexto inacessíveis, quanto a obrigação de trabalhar doente e no frio e a interdição do retorno ao Brasil antes de “pagar sua dívida”. Ou seja, conforme suspeitava o autor, tratava-se de um esquema de tráfico de pessoas e as travestis tinham seus passaportes retidos até poderem arcar com os débitos contraídos na viagem. Não obstante, para Lino e Silva, este contexto também caracterizaria a emergência de um modo alternativo de liberdade.

Entendo que as pessoas retratadas na etnografia não pretendem ser incluídas no modo de vida valorizado pelo liberalismo tradicional. Para as pessoas queer com quem o autor criou laços de amizade e companheirismo, as liberdades normativas não faziam sentido. Porém, idealizar as liberdades minoritárias desfrutadas nas frestas do Estado oficial, em vez de politizá-las no sentido da transformação das práticas de exclusão, poderá atender muito mais aos interesses das elites do que das populações subalternizadas. O que as elites pretendem é justamente manter os dois mundos separados. Que os moradores da favela vivam como quiserem e pratiquem as suas liberdades minoritárias, desde que não façam reivindicações que impliquem em mudanças nos arranjos institucionais que negam a essa população até mesmo os direitos básicos valorizados pelo liberalismo.

O autor discute as violações e formas institucionais de opressão que o Estado Democrático de Direito exerce sobre as populações negra, LGBTQIA+ e os mais pobres. A democracia, contudo, é a única forma institucional que permite dar publicidade a esses desvios e, por meio de um sistema de liberdades políticas, lutar pela transformação do Estado, por uma distribuição mais justa de recursos e oportunidades. Uma comunidade governada autocraticamente não dispõe desses mecanismos. Quando um grupo torna públicas as violações praticadas por um Estado autoritário ou luta para modificar as suas leis, o seu destino, em geral, é a prisão, o exílio, a violência ou a morte.

Liberalismo minoritário é um perspicaz trabalho etnográfico que desnuda um lado da vida de pessoas queer na favela que não encontra espaço na literatura preocupada em denunciar ou fetichizar as diversas formas de opressão a que estão submetidas as populações marginalizadas na sociedade brasileira. A sua leitura nos convida a repensar a ideia de liberdade arraigada em nosso imaginário e coloca em evidência as promessas não cumpridas do liberalismo. Por desestabilizar essas categorias a partir das (escre)vivências de pessoas usualmente silenciadas, realiza uma tarefa das mais importantes para as nossas ciências humanas, que é olhar criticamente para a sempiterna herança do colonialismo.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Renato Francisquini

Matéria publicada na edição impressa #73 em agosto de 2023.