Flip, Literatura,
O sonho é possível
Romance de Geovani Martins causa indignação no leitor ao relatar o difícil cotidiano da Rocinha sob controle das UPPs
08nov2022 | Edição #64Mesmo Via Ápia sendo um romance, não dá pra negar que Geovani Martins é um grande cronista de seu tempo e de seu lugar, a favela da Rocinha. O autor dos contos de O sol na cabeça (2018) aqui domina a nossa imaginação com uma época e um cep muito bem demarcados. Via Ápia é uma importante rua da favela da Zona Sul carioca e título do livro com o qual Martins faz a sua retomada da história das comunidades que foi contada até aqui.
O autor utiliza os artifícios da literatura para dar conta das variadas camadas ocultas sobre a realidade da favela. A história da ocupação com o Programa de Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), implantado em 2012, é apenas o cenário para os verdadeiros protagonistas do romance, os amigos Washington, Wesley, Douglas, Biel e Murilo.
O livro conta a história de uma amizade nada romântica, porque é muito crua nos perrengues, nas tensões, nas alegrias e nas fugas pela sobrevivência, e que, ao mesmo tempo, se volta para esse Brasil que disputa o ódio e a arte o tempo todo. O medo como antídoto pra vontade de ficar vivo, tipo o disco dos Racionais MC’s.
Passados trinta anos de existência do grupo de RAP, as igrejas e as drogas continuam presentes, enquanto a sagacidade permanece sendo o motor que garante a sobrevivência para a gente brasileira. A urgência diária de acreditar que sonhar é preciso, em um ambiente onde é comum sofrer humilhações, como ser tirado de suspeito por policiais na entrada da favela e ser algemado na frente de todos.
O autor utiliza os artifícios da literatura para dar conta das variadas camadas ocultas sobre a realidade da favela
Como jovens que são, os amigos de Via Ápia querem oferecer pra mãe uma vida sem ter de pagar aluguel, com gás e geladeira cheia, afinal, eles precisam ter a família por perto pra receber apoio e não se perderem por aí. Querem conquistar a sua mina de fé, querem torcer pelo time do coração como se não houvesse amanhã, enchendo a cara, ficando chapado, experimentando as múltiplas sensações de viver.
O livro traz o ponto de vista único de quem passou por esse momento de dentro da favela. Quem, no momento da ocupação das UPPs, testemunhou tudo não como um repórter de fora que pode ser um X9 ou um desavisado, mas como alguém que conheceu essa experiência: o próprio Geovani, um dos principais nomes da Festa Literária de Paraty (Flip) deste ano, que participará da mesa O que deixaram para adiante, ao lado da autora Ladee Hubbard, de Nova Orleans, Estados Unidos. Mesmo que não tenha vivido todas as situações na pele, ele recorreu à memória afetiva do lugar para criar o seu romance.
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Via Ápia também explora a diferença das perspectivas do que é melhoria pra favela. Os moradores, a partir da lógica de buscar oportunidades, criam atalhos próprios, desviando dos caminhos traçados pela ausência do Estado, que só se faz presente com políticas da morte. Como foi o caso das UPPs, projeto feito para gringos verem no período da Copa da Fifa de 2014 e das Olimpíadas de 2016.
Marielle Franco analisou essa redução da favela da seguinte forma: “Decididamente, o Estado cumpre um papel de agente para o mercado e não agente de cidadania. Existe negligência e abandono desses territórios, de modo que grupos criminosos armados — o tráfico ou as milícias — acabam por impor a sua própria ordem, seja com a complacência ou com a indiferença do conjunto da cidade”.
As drogas são recorrentes no livro, fazendo parte do cotidiano da comunidade, como acontece na sociedade como um todo. Maconha, cocaína, a cerveja de lei depois do expediente, no fim de semana, na quarta à noite, na hora do jogo, na praia palmeando a polícia pra não levar uma dura. Elas são um meio de escapulir momentaneamente do cotidiano e das agonias de quem anseia por uma vida mais tranquila.
O livro traz o ponto de vista único de quem passou por esse momento de dentro da favela: o da ocupação das UPPs, como é o caso do próprio Geovani
O pensamento de “vencer na vida” em Via Ápia não diz respeito apenas à ideia de meritocracia ou de que o dinheiro resolve todos os problemas, mas nos permite ver que as coisas mais essenciais para uma vida digna são mais atravessadas pelo nosso cep do que pelo que somos. São influenciadas pelo olhar que a sociedade impõe sobre nós. Por exemplo, quando um dos personagens está disputando uma vaga de emprego, há uma desvantagem para o candidato que morar na Zona Oeste do Rio ou for ex-presidiário; nessas horas, ser morador de uma favela da Zona Sul é ser privilegiado, pois este conseguirá o trabalho.
A história gira em torno dos perrengues dos irmãos Wesley e Washington, que moram na Travessa Kátia com a mãe, Dona Marli, que até aceita que os filhos fumem dentro de casa só pra não serem avistados pela polícia. Wesley quer comprar uma moto para ganhar a vida sobre duas rodas e é apaixonado por Talia, colega da casa de festas onde trabalha e na qual a gerente persegue os funcionários. Apesar dos obstáculos, os irmãos continuam a sonhar.
‘Via Ápia’ nos faz sentir que estamos ali, na Rocinha, conhecendo as vivências de cada morador-personagem que defende seu direito de ter um lugar
O livro nos leva a enxergar contradições impostas, como com o personagem Murilo, rapaz que está prestando serviço militar na esperança de talvez desenvolver ali uma carreira, caminho recorrente para vários jovens de periferia que não veem muita alternativa depois da escola, o que os leva ao subemprego. Murilo chega a ter pesadelos com a ideia de participar de alguma operação na própria favela e encontrar ali amigos da infância, moleques com quem estudou e tomaram um rumo diferente na vida.
Via Ápia nos faz sentir que estamos ali, na Rocinha, conhecendo as vivências de cada morador-personagem que defende o direito de ter um lugar. O realismo de Geovani parte da aparente simplicidade do cotidiano, que é bastante complexo. A verdade é que o livro dá uma esperança danada, porque, ao mesmo tempo que deixa a gente indignado com umas paradas, nos faz entender que é essa indignação que nos move a contar essas histórias.
Matéria publicada na edição impressa #64 em outubro de 2022.
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