Jornalismo,
Os acordos do silêncio
Dois livros mostram as investigações jornalísticas das denúncias de assédio contra o produtor Harvey Weinstein
11mar2020 | Edição #32 abr.2020No dia seguinte à posse de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos, mulheres saíram às ruas em protesto por todo o país e pelo mundo. Em Park City, Utah, a neve que encobria a Main Street não impediu que 8 mil manifestantes bem agasalhados se munissem de seus gorros cor-de-rosa — os pussyhats que coloriram as fotos da Marcha das Mulheres em 21 de janeiro de 2017 — e de cartazes com palavras de ordem para se indignarem contra as prováveis políticas do bilionário assediador eleito presidente. Dentre os homens que demonstravam sua solidariedade às mulheres, havia um que usava gorro cinza e casaco preto e que aproveitou o fato de estar na cidade para o festival de cinema de Sundance para participar da Marcha. Seu nome era Harvey Wein- stein, consagrado produtor de cinema.
Dez meses mais tarde, ele seria exposto como assediador e abusador de mulheres, um predador sexual que atuou por décadas nos bastidores da indústria cinematográfica e de entretenimento. Protegido por uma cúpula de silêncio e conivência, Wein-stein construiu sua reputação como uma das grandes entidades do cinema. Graças ao trabalho investigativo insistente de Jodi Kantor e Megan Twohey, do New York Times, e de Ronan Farrow, da revista New Yorker, descobriu-se que essa cúpula era de vidro. Um vidro resistente, é verdade, mas que finalmente rachou.
O jornalista norte-americano Ronan Farrow [Brigitte Lacombe/Divulgacão]
De outubro de 2017 até hoje, ainda se fala de Harvey Weinstein. Muitos se dizem cansados de ouvir a respeito dele e argumentam que os dados aterrorizantes sobre o modus operandi do produtor já circularam com tanta frequência que não há nada mais a ser dito. As reportagens publicadas desde os primeiros furos de Kantor, Twohey e Farrow teriam explorado à exaustão as reuniões com teor supostamente profissional que logo se transformavam em cenas perturbadoras em quartos de hotel, com Harvey Weinstein de roupão exigindo massagens das mãos de jovens ainda em início de carreira. Então, o que caberia a não apenas um, mas a dois livros recém-lançados sobre as investigações, escritos pelos jornalistas que enfrentaram a fúria de um dos produtores mais poderosos de Hollywood?
Antes de tudo, Ela disse, de Kantor e Twohey, lançado pela Companhia das Letras, e Operação abafa, de Ronan Farrow, publicado pela Todavia, retraçam a longa e tortuosa apuração que culminou nas reportagens. Dos primeiros contatos com as sobreviventes às disputas com a equipe legal do produtor — e também com seu time de espiões contratados da agência israelense Black Cube para agir como fontes falsas, manipular os jornalistas e descobrir informações que fossem úteis às investidas de Weinstein —, passando pelas minúcias da escrita dos textos, ambos os livros apresentam o processo de investigação jornalística em seu formato mais paradigmático: o jornalismo a serviço do público, exumando verdades escondidas e produzindo discursos que se levantam contra o silêncio e a complacência institucionais. Nesse caso em especial, o trabalho do trio de jornalistas é esforço de apreensão de uma realidade que se esquivava de qualquer tentativa de enfrentamento. Todas as matérias anteriores sobre a conduta predatória de Weinstein foram enterradas, graças aos recursos do produtor e sua influência sobre a imprensa. Nunca antes alguém conseguira chegar tão longe nas investigações; nunca antes um número considerável de sobreviventes se sentira seguro o bastante para finalmente falar.
Ela disse e Operação abafa não se concentram apenas no homem Harvey Weinstein, apesar de sua sombra inevitavelmente se estender sobre cada passo dos jornalistas. Sua preocupação é mais abrangente. Kantor, Twohey e Farrow querem analisar as estruturas de poder e privilégio de um sistema que, com sua máquina de cúmplices e colaboradores, configura o que Farrow chama de “conspiração do silêncio”. Como um homem na posição de Weinstein, eles se perguntam, conseguiu usar seu poder para abusar de tantas mulheres e permanecer impune por tanto tempo? Os editores da New Yorker e do New York Times chegaram a questionar se Weinstein seria famoso o suficiente para que o tema interessasse aos leitores. O contra-argumento dos jornalistas é preciso: pouco importa se a população norte-americana reconhece ou não o nome do produtor. O que ele representa é muito maior do que isso. Seus crimes são crimes de uma sociedade inteira, e esse é o motivo pelo qual o nome de Weinstein continua em nossas bocas.
Através de seus textos, os jornalistas expõem e esmiúçam os mecanismos que silenciam sobreviventes. É claro que Weinstein não era o único — nem tampouco será o último —, mas os procedimentos que adotava mostram como lidar com o abuso sexual se transformou em uma negociação. Nenhum departamento de rh das empresas de Weinstein agia perante as denúncias.
Os acordos assinados com as mulheres impediam que fizessem qualquer menção ao ocorrido, mediante perdas financeiras gigantescas — além do medo de retaliações, pelas quais Weinstein era conhecido. Trocar dinheiro pelo silêncio impede que o assediador ou abusador seja responsabilizado por seu crime. E, se ninguém fala a respeito, ele pode continuar violentando mulheres na mais plena impunidade. Em uma entrevista concedida a Farrow, Zelda Perkins, ex-assistente de Weinstein, resume bem a raiz do problema: “Em última análise, a razão pela qual Harvey Weinstein trilhou esse caminho foi que ele teve permissão para tanto, e isso é culpa nossa. Enquanto sociedade, a culpa é nossa”.
Rebelião da fala
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Uma estimativa de 2013 da Secretaria Nacional de Segurança Pública calculou que, no Brasil, apenas 7,5% das vítimas de violência sexual reportam suas experiências à polícia. Sobreviventes tendem a temer seus agressores; sentem culpa e vergonha e se responsabilizam pelo crime que sofreram; humilhados e intimidados, podem ter sido coagidos a manterem o silêncio — atitude que, diante do descaso institucional, é assustadoramente simples. Casos de violência sexual não raro se tornam terreno de intenso conflito de narrativas. Denunciar seria uma montanha intransponível, pois implica enfrentar uma ordem social que deslegitima e desacredita rotineiramente a palavra de sobreviventes.
Logo após a explosão do caso de Harvey Weinstein, a redação do New York Times recebia telefonemas sem parar de mulheres que queriam fazer suas próprias denúncias, fosse do produtor ou de outras experiências pessoais de assédio. As reportagens mostraram às sobreviventes que elas não estavam sozinhas. A violência sexual, como resultado de relações assimétricas e desiguais entre homens e mulheres, era vivenciada também pelas mais famosas e admiradas atrizes de cinema. Antes dos ataques, as sobreviventes do produtor o viam como uma oportunidade para alavancar suas carreiras. Ele rapidamente se tornava aquele que poderia destruí-las diante de uma possível denúncia. Por terem acontecido em contextos profissionais, tais experiências demonstram que abuso extrapola qualquer fronteira. Do teste do sofá ao papel da indústria do entretenimento em cristalizar o corpo feminino como objeto do desejo do outro, o caso Weinstein testemunha os estigmas e empecilhos inerentes à posição da mulher para construir sua sexualidade e agir sobre seu corpo.
Das duas mulheres que falaram on the record para a dupla do New York Times e das treze cujas histórias foram relatadas por Farrow, hoje são mais de oitenta as que denunciaram Weinstein por assédio, tentativa de abuso e estupro. Como parte do debate público sobre as consequências dessas acusações, ergueu-se nas redes sociais o movimento #MeToo, a princípio uma hashtag incluída em tuítes e posts de sobreviventes que queriam compartilhar suas experiências de violência sexual. A hashtag funcionou como uma espécie de mão levantada: eu também, nós também.
A campanha Me Too, sem hashtag, foi criada pela assistente social Tarana Burke como uma frase que pudesse ser passada de sobrevivente a sobrevivente, em uma rede de solidariedade e empatia. Burke trabalhava com garotas não brancas norte-americanas e sentia que faltava um ambiente seguro em que pudessem lidar com experiências traumatizantes de violência sexual. Isso começou em 2006. Uma década depois, Burke via o slogan de sua campanha viralizar e alcançar dimensões globais como um movimento em prol da libertação do discurso feminino e que fala de poder — tanto o poder do perpetrador contra a posição vulnerável da sobrevivente quanto o poder das sobreviventes.
Rechaçado por quem defendia o “direito de importunar”, como as cem francesas que assinaram um manifesto no Le Monde, e por quem via essa onda como uma guerra dos sexos, o #MeToo não é milagre ou uma solução definitiva para as estruturas sistêmicas de conivência às violências sexual e de gênero. Pode até ser visto como um entusiasmo vago de militância hollywoodiana e uma campanha superficial de internet. Mas os que alegam isso se esquecem de que o #MeToo mostra o poder de quem vê como sexualidade, desejo e normas patriarcais de gênero resultam em uma violência histórica e endêmica.
Confrontar o desequilíbrio e criar espaços para discuti-lo implica um esforço de reformular normas e valores e de romper tanto com a ordem social vigente quanto com as regras do discurso. O #MeToo, a despeito de sua inépcia para lidar com fatores de raça e classe — violência sexual é universal, mas a reação a ela depende de se quem está falando é uma celebridade branca ou uma trabalhadora negra —, defende a importância do discurso e da tomada de palavra como uma ação insurrecional no mundo, conforme explica a filósofa francesa Mona Gérardin-Laverge. Ele permitiu que várias vozes se unissem, partindo de experiências íntimas que encontravam seus ecos em outros discursos para denunciar a violência e contestar a visão da mulher como subserviente ao desejo masculino, cujo corpo estaria à disposição do outro. Demonstrou que era imperativo definir os limites entre sedução e abuso, consentimento e recusa, e esclarecer as dinâmicas assimétricas e por vezes fatais do jogo sexual.
Falar pode significar uma insurreição contra as normas que estabelecem quem pode ou não tomar a palavra, e sobre quanto vale esse discurso. O #MeToo não é suficiente, mas age como desenvolvimento de lutas passadas. Com ele, todos os sobreviventes — fossem de Wein-stein, fossem de outros abusadores — que rompem o silêncio e resistem aos mecanismos que os amordaçam conseguem intervir no espaço social e político em um esforço de transformação urgente e necessário.
Julgamento final?
Três anos se passaram desde que Harvey Weinstein marcou presença na Marcha das Mulheres como suposto aliado. Em janeiro de 2020, sua direção era outra: curvado sobre um andador e flanqueado por advogados, ele caminhou para o tribunal da Suprema Corte do Estado de Nova York no primeiro dia de seu julgamento, sob cinco acusações que incluíam duas de estupro. Após um mês de audiências, o júri o considerou culpado de estupro em 3º grau, quando a vítima não tem condições de consentir, e por praticar ato sexual forçado, mas o absolveu das acusações mais graves – inclusive a de padrão de comportamento predatório, que poderia tê-lo condenado a prisão perpétua. Em 11 de março, saiu a sentença: 23 anos de encarceramento. Um novo processo será aberto em Los Angeles, com mais duas acusações.
É cedo para dizer se as consequências do #MeToo e do julgamento de Weinstein serão duradouras e efetivas. O processo foi difícil e parece pouco que só um agressor sexual tenha sido julgado e declarado culpado após anos de luta. Weinstein pode ser a exceção que permitirá ao sistema sobreviver, ou a vitória que simboliza o começo de um desafio às hierarquias e desigualdades.
Se Kantor, Twohey e Farrow nos ensinam que precisamos falar de Harvey Weinstein porque o sistema que o criou persiste, enraizado como está em nossa consciência cultural e política, o #MeToo mostra que quanto mais pessoas se dignarem a ouvir sobreviventes, maiores são as chances de mudança. Ainda existem Weinsteins por aí e muitos “eu também” em total silêncio. O conjunto de fatores que originou Weinstein e milhares de outros predadores sexuais resiste aos golpes de derrubá-lo. Resta saber se o contexto que fomentou o rompimento do silêncio, ao construir um espaço relativamente propício à fala de sobreviventes, será mais forte e perdurará.
Matéria publicada na edição impressa #32 abr.2020 em março de 2020.
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