Jornalismo,
Distopias reais
Jornalista norueguesa escreve sobre viagem que fez pelas ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central décadas depois da queda da URSS
26abr2021 | Edição #45Parece que a Porta do Inferno existe, tem cheiro de metano e fica no deserto do Turcomenistão. As chamas da cratera ardem desde 1971, quando foi criada por um acidente em meio a tentativas de explorar o gás natural da região. A aldeia de 350 pessoas das proximidades foi dissolvida para evitar que turistas viajassem até o local. Apesar disso, um ou outro estrangeiro consegue escapar da vigilância de uma das ditaduras mais autoritárias do mundo para testemunhar o fogo que sai das entranhas da Terra. Não é isso o que o viajante quer? Ver com os próprios olhos o que os outros se contentam em ouvir de relatos alheios?
Foi o desconhecimento que se tem dos países da Ásia Central que atraiu a antropóloga e jornalista norueguesa Erika Fatland a empreender uma viagem de cinco meses, realizada em 2013 e 2014, por Turcomenistão, Cazaquistão, Tadjiquistão, Quirguistão e Uzbequistão, que se tornaram repúblicas independentes com o esfacelamento da União Soviética em 1991. Seu impressionante relato chega agora ao Brasil pela editora Âyiné com tradução direta do norueguês de Leornado Pinto Silva, que já verteu para o português obras de Henrik Ibsen, Jostein Gaarder e Karl Ove Knausgård. É uma boa opção de leitura para este período de isolamento, em que as viagens estão restritas por causa da pandemia de Covid-19. Não é exatamente uma leitura escapista, pois o livro aborda temas pesados, mas funciona como uma viagem por procuração.
Dividido em cinco partes dedicadas a cada um dos países, o livro apresenta uma região dominada por ditaduras personalistas — à exceção do Quirguistão, o mais democrático da Ásia Central —, em que cidades são feitas de mármore (Turcomenistão), mulheres são raptadas para se casarem com homens que nunca viram na vida (Quirguistão), museus de arte soviética sobrevivem no deserto (Uzbequistão), a maior biblioteca da Ásia Central só possui duas estantes com livros (Tadjiquistão), e onde há locais abandonados nos quais os russos fizeram testes com bombas nucleares (Cazaquistão). Fatland apresenta dados sociais, históricos, políticos e econômicos de cada região que visita, mostrando como a realidade pode ser mais estranha que a ficção. A seção voltada para o Turcomenistão — a mais interessante das cinco — parece um mundo distópico digno da autoria de um George Orwell.
Entre-lugar
O fato de ser uma mulher europeia faz com que Fatland fique em um entre-lugar onde a religião islâmica é mais pronunciada. Sendo mulher, ela tem acesso ao ambiente íntimo das casas (algo proibido a homens que não fazem parte da família) e a cerimônias e locais exclusivamente femininos; sendo europeia, possui o status de “homem honorário”, podendo conversar com certo nível de igualdade com os homens. Isso fica claro durante os festejos de um casamento realizado em uma aldeia do vale do Yaghnob, no Tadjiquistão, em que ela consegue se comunicar, com a ajuda do seu guia Murat, com os homens mais velhos em um cômodo enquanto toma quantidades intermináveis de chá; em seguida, é convidada para ficar no cômodo com as mulheres, com quem não consegue conversar, pois o guia não pode adentrar o ambiente feminino.
Os yaghnobis são um capítulo à parte: descendentes de um povo nômade, criador de animais, que praticava o zoroastrismo e que hoje é islamizado, eles foram retirados do vale pelos soviéticos para trabalhar em propriedades rurais coletivas, alterando de forma abrupta sua cultura e seus costumes; até hoje não são reconhecidos no Tadjiquistão como um grupo étnico.
A qualidade do livro deve-se à destreza linguística de Fatland, que fala oito línguas, inclusive o russo
A qualidade do livro deve-se, sobretudo, à destreza linguística de Fatland — o que já se percebe nas primeiras páginas, em que ela conta estar estudando uma apostila de língua turcomena no avião que a levará à capital, Ashgabat. Falante de oito línguas, inclusive o russo, Fatland consegue ter acesso a histórias que humanizam seu relato e proporcionam reflexões mais complexas sobre os países que visitou. Ainda assim, há partes em que ela mantém o discurso bastante difundido e estereotipado de que certos grupos ficaram isolados e parados no tempo por muitos séculos, até que a conquista dos russos os colocasse no mundo da “história”, finalmente trazendo “desenvolvimento” e “mudança” para essas sociedades “eternas”.
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É a velha narrativa, perpetrada principalmente durante a expansão colonialista do século 19, de que os povos ditos “primitivos” (habitantes de áreas rurais e desérticas, por exemplo) eram “selvagens” e imunes a qualquer tipo de mudança, e a chegada dos europeus — nesse caso, os russos — é que os teria tirado do torpor de séculos. Não se questiona aqui que as rivalidades imperialistas dos russos e britânicos na Ásia Central, conhecidas em conjunto como Grande Jogo, levaram a alterações radicais nessas sociedades, mas não se pode desconsiderar toda a história que veio anteriormente, inclusive advinda de conquistas de outros impérios, como o de Alexandre, o Grande (uma obsessão em toda a região), o árabe-islâmico e o mongol, que também alteraram drasticamente a região.
É também preciso lembrar que antes de a área ter sido anexada ao Império Russo no século 19, foi lá que nasceram cidades míticas e importantes postos comerciais da Rota da Seda, como Samarcanda e Bukhara, no atual Uzbequistão. A parada em Samarcanda, inclusive, parece coroar o relato de Fatland: “A sensação que tive foi a de que talvez o grande propósito dessa longa jornada de cinco longos meses fosse vir me sentar justo aqui, apreciar o pôr do sol no Registão, ao som do pop uzbeque e da sinfonia esganiçada dos pardais”.
Apesar dessas ressalvas, é um prazer descobrir a região com Fatland, que nunca esconde a frustração do desconhecimento que tem dessa parte do mundo. Ao visitar as ruínas da cidade de Merv, no Turcomenistão, onde foram encontrados artefatos da chamada civilização do Oxus, uma das grandes civilizações da Idade do Bronze, junto com Mesopotâmia, Índia e Egito, ela tromba com o arqueólogo Viktor Sarianidi, um dos poucos profissionais a se dedicar ao estudo dessa área e que morreu poucos meses depois do encontro com a jornalista. Já idoso, comenta o que pode ser considerado um mantra para essa e outras regiões do planeta: “Há muita coisa por descobrir nesta parte do mundo. Muita coisa”.
Matéria publicada na edição impressa #45 em abril de 2021.
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