Infantojuvenil,
Um épico tupi
Munduruku reconstitui Brasil pré-colonial com imaginação histórica e literária
29out2018 | Edição #16 out.2018Daniel Munduruku é, provavelmente, o autor indígena mais publicado do mundo — do Brasil certamente o é. Tem mais de cinquenta livros para crianças, jovens e educadores. Também acumula títulos de Altamente Recomendável pela Fundação Nacional do Livro da Infância e da Juventude (FNLIJ), um Jabuti e outros tantos prêmios. É fundador do Instituto UKA (Casa dos Saberes Ancestrais), que reúne toda uma geração de autores indígenas, conjugando criação e militância política e cultural.
Seu novo livro atrai logo de cara: pela capa. Dá ganas de tocar a textura de tronco de árvore da ilustração, que remete também à pele enrugada de um ancião. Os olhos arregalados da personagem refletem as caravelas dos europeus e são uma promessa do que o livro nos reserva.
A parceria Munduruku com o ilustrador Maurício Negro não é de hoje: Um dia na aldeia, A palavra do chefe, O banquete dos deuses são alguns dos muitos livros que fizeram juntos. Maurício caiu nas graças dos autores indígenas e ilustrou trabalhos de vários deles. Também colabora em livros de temáticas africanas e negras, aprofundando o mergulho em temas étnicos, ancestrais, ambientais e ligados à diversidade cultural.
Épico
O Karaíba é sobre um Brasil de antes do Brasil. Sem ousadias de linguagem, em tom épico, romanesco, lançando mão de um narrador clássico onipresente em terceira pessoa, o livro nos conta uma história passada nestas terras logo antes da chegada dos portugueses.
O autor tem o mérito de nos transportar para esse tempo em que os relatos não eram escritos, mas contados da boca à orelha, e nos faz imaginar aldeias incrustadas na floresta, com caminhos intercomunicantes e seus mensageiros, as alianças e rivalidades entre as grandes nações indígenas Tupiniquim e Tupinambá, em uma narrativa que, para além dos contornos estilísticos, é um tanto plausível.
Afora as evidências arqueológicas e arqueobotânicas que retraçam hoje esses caminhos (para quem perdeu ou não sabe ouvir seus Karaíbas), não são poucos os relatos de sonhos e profecias dos pajés sobre a chegada dos brancos (com seus pelos na cara e no corpo, seu cheiro forte, seus modos, roupas e truculência).
Brancos
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Visões não só da “grande chegada”, em 1500, mas dos diversos contatos que sucederam e que continuam a suceder (sim, ainda existem povos indígenas isolados no Brasil!), no interior dessas terras, de lá pra cá. Tudo isso pra dizer que o autor construiu com muitos ecos o chão onde se deita esta narrativa, onde ela acende seu fogo e amarra sua rede, e nos conta desses dias de angústia que antecederam a chegada das tais caravelas refletidas nos olhos (de fora e de dentro) do velho Karaíba — o sábio indígena que põe em marcha esta trama, misturando os destinos das nações.
Ao enxergar os personagens indígenas — tantas vezes genéricos — com sua subjetividade, nos aproximamos de seus dilemas e humanidade
Temos aí as grandes linhas do projeto de Daniel Munduruku. Nas pequenas, outro mérito: as personagens são cheias de angústias, desejos, hesitações, têm aptidões e condições físicas e sociais diversas. Temos um rapaz que não pode ser guerreiro pela frágil compleição de suas pernas, mas se torna um ligeiro mensageiro e até um chefe sagaz; uma menina que quer ser guerreira como seus irmãos, embora ainda não seja dessa vez; um sábio que também tem dúvidas.
Ao enxergar os personagens indígenas — tantas vezes genéricos — com sua subjetividade, nos aproximamos de seus dilemas pessoais e humanidade, e podemos ver que a Tradição (assim mesmo, com letra maiúscula) é composta tanto de suas regras quanto suas exceções, que a cultura é viva, fruto dos tempos e está em constante transformação.
E, por falar nisso, que sorte a das novas gerações que podem ler histórias dessas, e não apenas as de princesas e cavaleiros em castelos medievais do lado de lá do oceano. Que venham mais e mais.
Matéria publicada na edição impressa #16 out.2018 em outubro de 2018.