Infantojuvenil,

Menina como outra qualquer

Em “Rônia”, uma garota enfrenta o difícil processo de passagem da infância à vida adulta

15nov2018 | Edição #10 abri.2018

Falar da escritora sueca Astrid Lindgren quase sempre significa falar de Píppi Meialonga, o best-seller da menina de “cabelo cor de cenoura” que figura entre os clássicos da literatura infantil. A irreverente personagem, criada por Lindgren nos anos 1940 para distrair sua filha que estava de cama, encantou gerações pela sua liberdade e absoluta confiança em si mesma.

Autora de mais de cem obras, Lindgren não se preocupava em escrever livros com propósitos educativos — queria divertir os leitores. Mas suas histórias não fogem de temas difíceis, como a morte e a separação. São notáveis a naturalidade e a delicadeza, e às vezes até o bom humor com que apresenta essas questões. Rônia, lançado em 1981, é exemplar nesse sentido.

O livro conta a história da filha do temido — porém extremamente amoroso — ladrão Mattis. Dono de um imenso castelo e de uma fortuna advinda dos roubos que pratica na floresta, Mattis espera que Rônia siga o destino traçado por ele e seus antepassados. Mas a filha desconhece as atividades do pai e por qual razão ela precisa se manter distante de um outro grupo de ladrões que rodeia o castelo.

Munida só desse imperativo, em suas andanças Rônia se depara com Birk, o filho do chefe inimigo. Ela segue as orientações do pai em relação aos malvados anões cinzentos e às perigosas harpias da floresta. Mas qual pode ser o perigo em ficar amiga de uma criança parecida com ela?

A trajetória da personagem traz à tona processos recorrentes na passagem da infância para a vida adulta. Crescer pressupõe não apenas a descoberta de que existe um mundo perigoso que é preciso enfrentar sozinho, como também a percepção de que os adultos não dizem sempre a verdade. A desconstrução da imagem idealizada dos pais é um passo importante nesse processo de separação. É somente a partir do momento em que ela se dá conta de que seu pai é um ladrão que Rônia passa a se encontrar em segredo com Birk.

O grande trunfo do livro é o modo como a protagonista é representada. Rônia ajuda Birk e chega a salvar sua vida. Ela é forte, independente e conhecedora dos segredos da floresta, mas Lindgren não faz dela uma “mulher maravilha” inabalável: Rônia é sensível, sofre quando se separa da família e é socorrida pelo amigo quando está em apuros. Como leitores, nos identificamos com as fraquezas da personagem e desejamos ser corajosos e inteligentes como ela. Ao evitar maniqueísmos, a narrativa sugere outro aspecto importante do processo de amadurecimento: a percepção de que entre os extremos há uma infinidade de gradações. Rônia não é Píppi, mas, para os fãs da segunda, a primeira é uma adorável leitura. 

Quem escreveu esse texto

Mariana Schiller

É crítica literária e mestre em planejamento urbano pela Bartlett School of Planning, em Londres.

Matéria publicada na edição impressa #10 abri.2018 em junho de 2018.