História,

Vidas paralelas

Livro narra mil anos de cultura e ciência islâmicas a partir de trinta biografias de personagens históricos notáveis

28nov2018 | Edição #19 dez.18/fev.19

A península Arábica parecia ser o mais improvável dos lugares onde nasceria, no século 6, uma religião de vocação global. Enquanto os holofotes da história focalizavam os conflitos entre os chamados reinos bárbaros na Europa Ocidental, a sustentação do Império Romano Oriental em Constantinopla e as frequentes incursões do Império Persa Sassânida, uma revolução estava prestes a acontecer.

As pregações de Muhammad levaram à consolidação do islã, religião monoteísta que hoje é a segunda maior em número de seguidores — quase 25% da população mundial. Meca e Medina foram o palco do surgimento de uma transformação radical, que a partir das franjas de dois impérios antigos mudaria o equilíbrio de forças no mundo conhecido. 

A rápida expansão mulçumana não tem precedentes. Apenas cem anos após a morte do Profeta, exércitos lutavam em seu nome com os francos, no coração da Europa. Quando Carlos Martel conseguiu freá-los na batalha de Poitiers (732), já integravam a comunidade islâmica a península Arábica, o norte da África, parte do Oriente Médio e o sul da atual Espanha.

Não são poucas as armadilhas que esperam aqueles que pretendem contar a história do islã. A primeira, e talvez mais óbvia, é a onipresença de notícias e comentários sobre atentados no Oriente Médio. Divisões entre muçulmanos, pouco conhecidas por que vê de fora, parecem ser o estopim recorrente para atos de violência. Da mesma forma, os ataques do grupo Estado Islâmico têm a sua parcela de culpa em reforçar uma versão radicalizada da religião. Especialmente quando atingem alvos na Europa ou nos Estados Unidos, esses episódios armam uma segunda armadilha: a visão de intolerância, de conflito entre visões ocidentais e orientais de mundo. 

Tudo isso está fortemente arraigado em uma visão histórica. É o próprio grupo Estado Islâmico que, ao promover ataques na Europa, constantemente se refere aos seus inimigos como sendo “os cruzados”. 

Eis o cenário em que surge o livro de Chase Robinson. Valendo-se de uma tradição islâmica, que visa a transmitir ensinamentos a partir da compilação de relatos das vidas exemplares, o autor criou uma oportuna introdução ao complexo percurso histórico da religião. O livro é composto de trinta perfis que, colocados lado a lado, abrem portas para conhecer momentos-chave de formação do islã. 

Em trinta pequenos perfis, o autor criou uma oportuna introdução ao complexo percurso histórico da religião

Escolher trinta personagens para ilustrar uma história de mil anos não é tarefa simples. A seleção procurou figuras que fogem, aqui e ali, da lista dos mais conhecidos por realizações políticas e militares. A inclusão de poetas, comerciantes e cientistas ajuda a compor um mosaico mais rico do que aquele que se monta apenas pela lista de notáveis soberanos.

O largo período histórico tem seu correspondente geográfico: a impressionante extensão territorial coberta pelo livro, partindo da península Arábica, passando pela Damasco omíada, a Bagdá abássida, o Egito fatímida e a península Ibérica sob o Califado de Córdoba. Do passado nebuloso que envolve o nascimento do Profeta até pouco depois da vida bem documentada de Muhammad 2, que conquistou Constantinopla, a escrita de Chase Robinson procura aspectos de cada personagem que contribuem para o encadeamento da narrativa. 

Aixa

Após Muhammad, não segue uma história sobre Abubacar, reputado como o primeiro califa, mas sim a vida de Ali, primo do Profeta, califa e precursor do xiismo. Nesse núcleo inicial, destaca-se a biografia de Aixa, terceira esposa do Profeta. O autor ressalta a diferença etária entre os dois e a controvérsia (mais moderna) sobre a idade da noiva quando o matrimônio foi consumado: nove anos, segundo fontes antigas. Robinson observa que isso não causou maior debate.

O mesmo não pode ser dito do episódio em que, alegando ter perdido um colar, Aixa se separou da caravana em que seguia o Profeta, tendo depois sido encontrada e levada de volta. As circunstâncias criaram controvérsia e fizeram surgir especulações sobre um possível adultério. Robinson não se preocupa em desvendar se os boatos procediam, mas sim em deixar claro que a simples existência dessas especulações indica que havia resistência à figura de Aixa.

Essa resistência fica ainda nítida quando se percebe que, após a morte do Profeta, Aixa ficou fora dos palcos da história e teve pouca participação nos enredos de sucessão do califado. Essa situação mudaria em 565, quando ela liderou um exército contra Ali. Esse episódio ficou conhecido como a Batalha do Camelo por causa da montaria utilizada por Aixa e é reputadamente um dos primeiros conflitos travados entre mulçumanos.

Outros personagens célebres ocupam as páginas da história narrada por Robinson, como Al-Ghazali, Saladino e Rumi. Chama atenção, no século 12, a figura de Averróis, filósofo responsável pela tradução e comentários à obra de Aristóteles. Vivendo na península Ibérica, ele defendeu a teoria da dupla verdade, que buscava compatibilizar preceitos religiosos e razão.

(Averróis também ganhou uma outra biografia, desta vez nos cinemas, com o filme egípcio O destino, de Youssef Chahine. Exibido no Festival de Cannes em 1997, é estrelado pelo cantor egípcio Mohamed Mounir — chamado por lá de “o Rei” —, no papel de um bardo que acompanha o filósofo. O cantor e o filósofo parecem ter nascido um para o outro. Se Averróis disse que “Verdade não contradiz Verdade”, Mounir, com a potência capilar de um Wando e o status de um Roberto Carlos, dizia que “o Rei é o Rei”.)

O livro serve assim como uma porta de entrada para quem busca conhecer um pouco da história do islã. Longe de esgotar as biografias selecionadas, ele desperta a curiosidade para que se descubra mais sobre cada um dos personagens. Driblando as armadilhas que se colocam no caminho do historiador, o livro apresenta o complexo desenvolvimento de uma religião verdadeiramente global, narrado a partir de vidas ilustres.

Quem escreveu esse texto

Carlos Affonso Souza

É diretor do Instituto Tecnologia e Sociedade (itsrio.org) e professor de história do direito na Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

Matéria publicada na edição impressa #19 dez.18/fev.19 em novembro de 2018.