Jornalismo,

Ódio, modo de usar

Patrícia Campos Mello aprofunda em livro as reportagens que lhe valeram o Prêmio Maria Moors Cabot de jornalismo em julho

31jul2020 | Edição #36 ago.2020

O mundo é repleto de máquinas. São tantas alavancas, correntes, engrenagens, molas e parafusos que a compreensão de como todas essas peças se encaixam é um desafio que muitos simplesmente resolvem ignorar. 

Acontece que máquinas precisam de uma fonte de energia que as coloque em movimento. Aqui entram a força humana ou animal, o vapor ou a eletricidade, por exemplo. Nestes tempos modernos, um terceiro elemento passou a fazer parte do universo das máquinas: o manual de instruções. Nele estão descritas as peças e como elas se relacionam. E há informações sobre a fonte de energia.  

Se o cenário atual de desinformação e episódios de violência na internet pudesse ser descrito como uma máquina, quais seriam as peças dela? E a fonte de energia? São essas as perguntas a que A máquina do ódio, de Patrícia Campos Mello, procura responder. O livro serve como um manual que abre a caixa de montagem da máquina, oferecendo a perspectiva de quem não apenas sabe em teoria como as peças se encaixam, mas também experimentou de perto a energia que move as engrenagens. 

A peça mestra é, obviamente, o uso de redes sociais e de aplicativos de mensagem instantânea para fins políticos. Uma série de reportagens de Patrícia desvendou nos últimos anos o uso de disparos em massa de mensagens para promover políticos e atacar adversários, beneficiando em especial o então candidato Jair Bolsonaro. 

As reportagens mostram como empresas foram contratadas para disparar mensagens em massa. Raramente essas contratações foram declaradas na prestação de contas das campanhas: com a proibição de financiamento por pessoas jurídicas, apoiadores passaram também a contratar diretamente esses disparos. Tudo em desacordo com a legislação eleitoral.   

A partir de conversas com ex-funcionários e representantes de empresas de disparo, a autora descreve jornadas desgastantes. “Muita gente dormia lá, na escada, sofá, hall. Descansava um pouco, ia lá e fazia mais um turno” — disse um dos entrevistados. Fazer mais um turno significava habilitar inúmeros chips de celular — “caixas e mais caixas cheias de chip”, já que “o WhatsApp bloqueia números que enviam grandes volumes de mensagens” e, por isso, “a fim de manter a operação as agências precisavam de chips suficientes para substituir os que fossem bloqueados”. Mas de onde vinham os chips? Em nome de quem eram habilitados, já que para isso é preciso dar nome e CPF? A autora revela que uma das listas continha até 10 mil nomes, “sobretudo de idosos” que não faziam ideia de que alguém estava se aproveitando dos seus dados.

A repórter narra uma sequência impressionante de episódios de agressões contra jornalistas mulheres

Esse mercado negro de dados pessoais não afeta apenas quem teve o nome usado, mas também quem está na ponta de destino das mensagens, pessoas que não entraram voluntariamente em um grupo público de WhatsApp nem faziam parte da lista de contatos do partido. As mesmas agências que fazem os disparos também vendem o acesso a cadastros de pessoas segmentadas por dados como idade, endereço e poder aquisitivo. 

Um ex-funcionário da agência de marketing Yacows afirmou à repórter que “99% do que faziam eram disparos para políticos, e 1% era propaganda para a Jequiti, loja de cosméticos”. Outra peça descrita é a profusão de contas automatizadas que servem para inflar a audiência de conteúdos postados em redes sociais. Conhecidas como bots (de robots, robôs), essas contas seguem umas às outras e compartilham os mesmos conteúdos, dando a falsa impressão de que um assunto encontrou apoio ou repúdio veemente na internet.      
Essa opinião pública artificial se torna ainda mais perigosa quando autoridades passam a tomar decisões com base no volume e no conteúdo de mensagens postadas em redes sociais. Recentemente o Comando Logístico do Exército admitiu, em ofício ao Ministério Público Federal, que revogou portarias sobre controle de armas e munições em razão de questionamentos feitos pela administração pública e por “setores da sociedade, especialmente nas mídias sociais”.

Energia

Descritas as peças da máquina, a autora detalha a energia que move suas engrenagens. Aqui, os aparatos tecnológicos continuam em cena, mas um componente essencialmente humano ganha protagonismo: a ascensão de um discurso populista, que incita animosidades e se alimenta do confronto com adversários mais ou menos reais. 

Um desses adversários privilegiados é a imprensa. Patrícia narra uma sequência impressionante de episódios de agressões na internet e fora dela contra jornalistas mulheres. Um deles foi o depoimento de um ex-funcionário da Yacows na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), no Congresso Nacional, para investigar campanhas de desinformação. Ele afirmou que a repórter teria oferecido sexo para obter informações. A Folha de S.Paulo publicou a troca de mensagens entre a fonte e a jornalista, evidenciando a improcedência da acusação. Mentir em uma CPMI é crime. Por que alguém correria esse risco?

A autora evoca outros casos em que a narrativa importa mais do que o fato. Donald Trump disse que fez o seu discurso de posse, em 20 de janeiro de 2017, antes de a chuva cair: “Eu olhei para a chuva, que não veio, terminei o discurso, fomos para dentro, quando voltamos caía um temporal”. A jornalista, que estava lá, registra que “havia começado a chover assim que Trump abriu a boca. Como ele podia dizer uma mentira dessas? Milhões de pessoas assistiram ao evento, pessoalmente ou pela TV”. Era um prenúncio da era da pós-verdade.

O ressentimento, o medo, a vingança são os combustíveis dessa máquina. São sentimentos fortes. A autora reconhece que os próprios jornalistas caíram na armadilha e acabaram reforçando as estruturas desse aparato destinado a destruir reputações, ameaçar adversários e galvanizar a atenção pública. O primeiro erro da imprensa teria sido a prática da “falsa equivalência”, apresentando como “outro lado” de um debate discursos que simplesmente negam os fatos. O segundo erro que ela aponta é o hábito de validar falas ofensivas de autoridades populistas como “controvertidas” ou “polêmicas”.  

Mas haveria como não noticiar a fala de uma autoridade que pode mudar os rumos da política e mexer com os índices do mercado? Nesse sentido, a imprensa parece reproduzir a dinâmica dos algoritmos das redes sociais, que privilegiam conteúdos com os quais se tem mais engajamento. 

Emoção

O escritor Giuliano Da Empoli, em entrevista à autora, afirma que “políticos de centro correm o risco de entrar em extinção se insistirem em mensagens mornas, que não despertam emoção nos eleitores”. Não se trata mais de “unir eleitores em torno de um denominador comum, mas, ao contrário, de inflamar as paixões do maior número possível de grupelhos para, em seguida, adicioná-los [ao grupo maior]”. 

Essa dinâmica de acionar grupos que reagem especificamente a determinado tema só se fez possível na era do tratamento de grandes volumes de dados (big data), mas é preciso entender que as engrenagens não funcionam sozinhas. Elas precisam ser acionadas com paixões e visões de mundo, constantemente municiadas dentro de um enquadramento narrativo. É aqui que moram as teorias da conspiração, as explicações místicas e o revisionismo histórico, que confere pertencimento a um passado encantado. 

O livro traz uma visão muito pessoal dos bastidores das reportagens que estiveram em evidência no noticiário nacional: a busca pelo empresário espanhol que vendeu softwares para disparo em massa (“o galego ficou bastante nervoso, achei que ia jogar o cappuccino quente na minha cara”), o impacto do depoimento difamatório na CPMI e sua repercussão (“cheguei à redação chorando”).    

O título do livro parece conter um duplo entendimento. Por um lado, ressalta a existência da máquina; por outro, não esconde que ela é operada por pessoas e visa a atingir pessoas — inclusive pessoas como Patrícia Campos Mello. Esse componente humano é fundamental para entendermos não apenas como a máquina funciona, mas também para que ela serve, e como podemos desmontá-la.

Quem escreveu esse texto

Carlos Affonso Souza

É diretor do Instituto Tecnologia e Sociedade (itsrio.org) e professor de história do direito na Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

Matéria publicada na edição impressa #36 ago.2020 em maio de 2020.