História,
Uma história concisa da ditadura militar
Jornalista Luiz Octavio de Lima descreve a evolução política e o cenário cultural do país
07abr2020Em Os anos de chumbo, Luiz Octavio de Lima traça um panorama amplo e nuançado do período que se estende da renúncia de Jânio Quadros, em 1961, à posse de José Sarney na Presidência, em 1985. Com um texto claro e fluente, o jornalista consegue dar ao leitor uma impressão vívida da atmosfera da época: “Os relatos sobre os anos de chumbo costumam ser feitos sob a forma de memórias do cárcere ou estudos de ciência política”, escreve Lima: “O que se pretendeu aqui foi a imersão do leitor na época retratada, alternando a narrativa com a visão em primeira pessoa dos personagens que a viveram de perto”. Autor de outros quatro livros, o jornalista (que trabalhou nos jornais O Globo, Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo e nas revistas Veja, Época e Exame) lamentavelmente não chegou a ver sua última obra impressa: morreu em 15 de janeiro último, de um AVC agravado por um quadro infeccioso.
Diferentemente dos estudos acadêmicos, centrados na análise da dinâmica política, Lima faz um relato conciso dos acontecimentos, mas não se propõe a explicar os fundamentos sociais e econômicos daqueles conflitos. Os intrincados processos sucessórios na ditadura (as escolhas de Costa e Silva, Emílio Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo) são mencionados quase de passagem. O autor se detém um pouco mais na demissão do ministro Sylvio Frota, expoente da linha-dura militar – que tinha como ajudante de ordens o atual ministro Augusto Heleno, braço direito de Jair Bolsonaro. E conclui a reconstituição do confronto de 1977 citando um entusiasta do golpe militar: “‘Geisel nunca foi homem de 64’, avaliou o ex-líder estudantil e membro da Academia Militar de Defesa, Aristóteles Drummond. ‘Foi estatizante e inventou a tal abertura, que foi prematura. Afastou a influência positiva dos militares”. Essas interpolações na sua narrativa causam forte espanto, mas derivam de seu objetivo de compor um painel histórico com as visões de mundo da direita e da esquerda.
Enquanto os embates na caserna passam para o segundo plano, os movimentos dos civis recebem mais atenção, como a tumultuada visita de Robert Kennedy a Pernambuco, em 1965, quando criticou a intervenção americana na República Dominicana e defendeu a organização dos trabalhadores rurais em sindicatos para viabilizar a reforma agrária. Ou ainda a descrição das greves de Contagem e Osasco, em 1968, e da tentativa de suicídio do sindicalista José Ibrahim após três dias de tortura. Sempre que possível, o autor registra as polêmicas que agitavam a opinião pública, como o debate sobre a aprovação da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) em 1961, e tragédias como incêndio do “Gran Circus”, em Niterói, que provocou a morte de mais de quinhentas pessoas, no final do mesmo ano. Seu esforço para registrar uma gama variada de eventos lança um pouco de luz sobre alguns fenômenos sociais, como a origem das primeiras milícias do Rio de Janeiro, em 1962, ou a forma de atuação dos movimentos de extrema direita, como o Comando de Caça aos Comunistas dos anos 1960 e os Carecas do ABC dos anos 1980.
O livro ganha força na descrição do cenário cultural, como os festivais de música dos anos 60. Nas duas páginas que dedica ao terceiro Festival de Música da Record, vencido por Edu Lobo e Capinam com “Ponteio” (Gilberto Gil ficou em segundo, Chico Buarque em terceiro, Caetano Veloso em quarto e Roberto Carlos em quinto), traz informações curiosas: “O festival das estrelas também registrou injustiças e barracos. ‘Máscara negra’, de Zé Keti, dispensada na primeira classificatória, se tornaria o hit do Carnaval seguinte. ‘Eu e a brisa’, o maior sucesso da carreira de Johnny Alf, também foi esnobada”. Lima descreve as arbitrariedades da censura na década de 1970 e os absurdos que se multiplicavam: Carlos Drummond quase foi preso porque o Pasquim reproduziu um trecho do poema “E agora, José?” acima de uma charge ironizando a vitória da seleção brasileira na Copa do México. A precária formação cultural de muitos censores originava situações cômicas: certa vez, o chefe da Redação da revista Veja no Rio entrou na sala de embarque do aeroporto de Congonhas com o livro Trotski, o profeta armado, do marxista Isaac Deutscher. O censor examinou atentamente a capa e a contracapa e então concluiu: “Ah, o senhor é crente… Eu também sou”.
Os veículos submetidos à censura prévia, como O Estado de S. Paulo, publicavam orientações sobre o cultivo de flores ou receitas de bolo nos espaços deixados pelas reportagens suprimidas, pois o regime não permitia que os jornais deixassem espaços em branco nos locais cortados. A publicação desses textos deslocados tinha o objetivo de deixar clara a intervenção militar. Só que "a estratégia demorou a funcionar, porque os leitores levavam aquelas publicações a sério. Muitos telefonavam ou escreviam para cumprimentar o Estadão pelo apoio à literatura e à jardinagem. E houve reclamações sobre receitas culinárias que não estavam dando certo". Diante disso, Julio de Mesquita Neto passou a exibir trechos dos Lusíadas, de Camões.
Lima reconstitui toda a atmosfera cultural dos anos 1970, marcados pela emergência da contracultura e das políticas do corpo, e descreve o penoso processo de redemocratização, os atentados da extrema direita (na OAB, no Riocentro), a desagregação das bases políticas do regime e a eleição da chapa Tancredo Neves e José Sarney. E conclui: “Diferentemente do que se costuma imaginar, um regime ditatorial não assegura a implantação de um estado de ordem. Sob a aparente tranquilidade, sob o ilusório controle, costumam se instaurar a deterioração institucional, a perda de garantias individuais e as atividades subterrâneas que, no limite, afetam não apenas os adversários do regime vigente, mas a comunidade como um todo. Cedo ou tarde, todos terminam por sofrer algum efeito danoso – social, político ou econômico”.