Desigualdades, História,

Tesão pelo concreto

Oitenta anos depois, um olhar para o clássico de Caio Prado Júnior com suas falhas, contribuições e multitudes

01nov2022 | Edição #63

Um livro sobre a formação do Brasil contemporâneo com o subtítulo (Colônia) escrito por um radical oriundo da plutocracia cafeeira que pouco antes havia trocado socos com um “príncipe” da “família real brasileira” por causa de uma ex-namorada. Uma obra discretamente marxista publicada em meio à ditadura varguista do Estado Novo. Uma interpretação que almejava a revolução, mas que pouca atenção prestou nas classes subalternas. Caio Prado Júnior e sua obra mais conhecida continham multidões, e talvez esse seja um dos fatores para seu duradouro sucesso.


Formação do Brasil contemporâneo (Colônia), de Caio Prado Júnior, completou oitenta anos em 2022

Formação do Brasil contemporâneo (Colônia) completou oitenta anos em 2022. O bicentenário da Independência é especialmente propício para revisitar esse clássico. Nele, o intelectual paulista buscou explicar o Brasil da véspera de 1822, enxergando o início do século 19 como síntese dos três séculos que o precederam e como chave para entender a centúria e meia decorrida desde então. Escrito quase quarenta anos antes da profissionalização da historiografia brasileira, a partir da década de 1980, qual é o legado do livro e como ele pode ser lido hoje pelos interessados em compreender a história colonial brasileira?

Em um posfácio a Raízes do Brasil, clássico de Sérgio Buarque de Holanda publicado seis anos antes, em 1936, o historiador Evaldo Cabral de Mello escreveu que a grandeza do trio transformador do pensamento social brasileiro entre 1933 e 1942 se devia a seu tesão pelo concreto: se o primeiro substantivo se aplica prioritariamente a Gilberto Freyre, o segundo encaixa-se bem em Prado Júnior.

Dentre os autores das grandes interpretações do Brasil até a década de 70, o comunista paulista foi o que mais escrupulosamente aderiu às fontes primárias. Ainda que não tenha realizado pesquisa de arquivo, investigou exaustivamente a documentação publicada, sem jamais enveredar por estimativas e extrapolações pouco fundamentadas, como as eventualmente encontradas em Roberto Simonsen e Celso Furtado.

Suas fontes foram, porém, escritas em sua totalidade por membros da elite, como autoridades (principalmente oficiais régios) e viajantes estrangeiros. Prado Júnior muitas vezes não conseguiu enxergar os vieses dessas fontes porque confirmavam os seus próprios como homem branco socializado na elite intelectual e latifundiária. Em consequência, não percebeu como o poder conformava a produção do saber ao determinar quais vozes seriam preservadas — e publicadas. Assim, escreveu sem enrubescer que africanos e indígenas eram “povos de nível cultural ínfimo” cuja contribuição “para a formação brasileira é, além daquela energia motriz, quase nula”. Não deixou de mencionar episódios de resistência, mas os não brancos aparecem em seu livro majoritariamente como seres passivos submetidos à extinção e à exploração, enquanto os pobres de todas as cores são percebidos como vadios e preguiçosos.

Prado Júnior por vezes não enxergou os vieses de suas fontes porque confirmavam os seus próprios

Não era tanto racismo quanto algo também pernicioso: o menosprezo pelas experiências e potencialidades de ação dos setores populares que se desejava emancipar, como se as condições de opressão os tornassem irrelevantes. Em consequência, as relações entre dominantes e dominados pouco aparecem na obra. Um leitor teria mais sucesso ao buscá-las em romancistas comunistas contemporâneos ao autor, como Jorge Amado e Graciliano Ramos.

Talvez o fato de viver um momento de auge combinado da desigualdade e do autoritarismo tornasse mais difícil para Prado Júnior enxergar a agência subalterna, escaldado como estava pelos fracassos dos movimentos contestadores que apoiara nos anos anteriores. Em seu primeiro livro, Evolução política do Brasil (1933), o autor demonstrara mais sensibilidade por essa questão, ainda que apenas ao analisar o período imperial. Além disso, tratava-se de um momento em que o intelectual sentia maior otimismo com o Brasil e o mundo, pois se vivia o governo provisório de Vargas, debatia-se uma nova Constituição e Prado Júnior animava-se com a experiência soviética.

Sentidos e ecos

Deixemos de lado, porém, a honrada tradição dos resenhistas que reclamam do livro existente por buscarem algo que o autor não quis ou não pôde escrever. Formação do Brasil contemporâneo é uma impressionante obra de síntese que trata com desenvoltura de demografia, desigualdades regionais, hierarquias sociais, transportes, múltiplas atividades econômicas e estrutura política. Sua contribuição mais influente é a ideia de um sentido da colonização: “Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer [gêneros primários] para o comércio europeu”.

Era o persistente caráter extrativo da economia brasileira que o intelectual comunista desejava combater, em prol de uma estrutura mais voltada para o mercado interno, industrial, urbanizado e menos desigual. A influência do marxismo era perceptível, pois se tratava da formação do capitalismo, embora o termo, como o nome de Marx, não apareça: atitude prudente de alguém que já havia sido preso por dois anos pelo regime varguista.

O intelectual comunista desejava combater o persistente caráter extrativo da economia brasileira

Sua análise direta e compreensível encontrou eco em historiadores posteriores, como Fernando Novais, e acabou transformando-se na narrativa dominante na educação básica após a redemocratização. Pouco depois, porém, estudiosos como João Fragoso demonstraram a importância do mercado interno e a relativa autonomia dos comerciantes locais (dominantes no abastecimento interno e no tráfico negreiro) no final do período colonial. Para isso, utilizaram métodos quantitativos e exploraram inventários post mortem, registros portuários e documentos notariais que retratavam o cotidiano da atividade econômica. Assim como no tocante aos grupos subalternos, a abordagem pradiana da economia colonial foi influenciada por suas próprias preocupações políticas e teóricas e reforçada pelos vieses de suas fontes — pois as autoridades régias que produziram os documentos consultados preocupavam-se acima de tudo com a economia de exportação, essencial para a arrecadação metropolitana.

A análise de Prado Júnior da política colonial foi igualmente seminal, ainda que mais restrita à historiografia especializada, que continua a se bater até hoje em questões levantadas por ele. Embora não tenha compreendido a lógica particular do Antigo Regime, enxergando apenas confusão, centralização e desconfiança em uma administração régia que buscava principalmente arrecadar impostos, o intelectual paulista salientou as dinâmicas sociais que exigiam a contemporização entre a autoridade régia e os poderes privados das elites coloniais, abrindo um abismo entre a norma europeia e a prática americana.

O Brasil contemporâneo não é mais o mesmo de Caio Prado Júnior: a urbanização, a industrialização, a escolarização e o desenvolvimento do mercado interno transformaram o país — longe do grau desejado pelo velho comunista, mas o suficiente para tornar o início dos Oitocentos menos reconhecível para os leitores. Seu clássico ocupa hoje uma posição ambígua: não há outra síntese autoral e interpretativa que forneça um panorama tão minucioso de nosso passado colonial, mas a historiografia já o ultrapassou em muito, graças inclusive ao impulso proporcionado por suas férteis ideias.

Quem escreveu esse texto

Thiago Krause

Historiador, é coautor de Império em disputa: Coroa, oligarquia e povo na formação do Estado brasileiro (FGV Editora).

Matéria publicada na edição impressa #63 em outubro de 2022.