História,

Um historiador na Bodeguita

Em textos sobre a América Latina, Hobsbawm critica os erros da esquerda e receita Adam Smith para combater o narcotráfico

13nov2018 | Edição #7 nov.2017

Em meados de 1960, o historiador Eric Hobsbawm (1917-2012) somou-se à caravana de intelectuais e acadêmicos que se dirigiam ao Caribe para conhecer a ilha de Fidel Castro e Che Guevara. Como ele escreveria mais tarde, a revolução que ocorrera no primeiro dia de 1959 era um caso excepcional: com algumas centenas de homens, uma guerrilha de intelectuais e camponeses levara apenas dois anos, depois do desembarque em Sierra Maestra, para pôr em fuga o ditador Fulgencio Batista, “que se tornara preguiçoso graças a uma longa corrupção”. Ainda assim, entre outros efeitos, ela mudou a visão europeia segundo a qual o que acontecia ao sul do rio Grande era insignificante.

Hobsbawm, então professor adjunto do Birkbeck College, da Universidade de Londres, juntou a oportunidade com a vontade. Marxista, ele via um potencial revolucionário na América Latina, pois, diferentemente do que havia acontecido na Europa, o capitalismo não conseguira acomodar as demandas provocadas pelo ingresso das massas na política, sobretudo depois que o crash de 1929 atingiu as economias baseadas na exportação de matérias-primas. Além disso, não acreditava que “modernizar” os países da região, tornando-os mais parecidos com as economias ocidentais desenvolvidas — e com a ajuda delas —, fosse “um programa adequado ou mesmo viável”.

Para Hobsbawm, assim que se tornou comunista, Prestes esforçou-se ao máximo para conformar-se ao estereótipo de secretário do partido

Depois da visita a Cuba, seguiram-se muitas outras, inclusive ao Brasil. Os textos resultantes dessas viagens foram organizados por Leslie Bethell, historiador e brasilianista, seu amigo por cinquenta anos, no livro Viva la Revolución: a era das utopias na América Latina. Os ensaios, reportagens e estudos são, em sua maioria, dos anos 1960 e 70 — Hobsbawm não está falando dos bolivarianos deste século nem analisa as guerrilhas centro-americanas da virada dos anos 1970. Além de um texto sobre a Bossa Nova, há poucos trechos sobre o Brasil, que ele passou treze anos sem visitar — depois da primeira passagem, em 1962, voltaria para um seminário na Unicamp em 1975. No mais, é o Hobsbawm de sempre: mordaz, comprador de brigas, com olho de cronista, e que faz um esforço evidente para evitar que o seu desejo contamine o seu realismo.

Na busca de respostas para fracassos revolucionários, o historiador assesta golpes na direita, mas reserva as espinafradas mais veementes a gente de seu próprio campo — “insurrectos de campi universitários”, “machistas-leninistas” e todos os que, para ele, sofriam de esquerdismo. 

Um de seus alvos é o francês Régis Debray, companheiro de Guevara na Bolívia, que pôs no papel a teoria de que a instalação de focos guerrilheiros espalharia a revolução como fogo em capim seco. Comunistas ortodoxos também levam puxões de orelha por não compreenderem os camponeses e rejeitarem métodos populistas de comunicação direta com o povo. Che não era o romântico Byron, mas Lênin. Luís Carlos Prestes, finda sua Coluna, “esforçou-se ao máximo, assim que se tornou comunista, para conformar-se ao estereótipo de secretário do partido”.

Quando viajou pela primeira vez à América do Sul, Hobsbawm havia recém-publicado A era das revoluções: 1789-1848 (Paz e Terra), o primeiro volume da tetralogia sobre o mundo moderno que o consagraria. Em um livro anterior, Rebeldes primitivos, analisara revoltas sociais arcaicas — sem programa político — e majoritariamente rurais em países do sul da Europa. A coincidência temática o levou a pesquisar movimentos agrários na Colômbia e no Peru. Dez dos 31 textos do livro são sobre esses dois países, citados em vários outros artigos. Embora duvidasse que revoltas rurais pudessem provocar revoluções nacionais — a mexicana de Emiliano Zapata e Pancho Villa em 1910 seria uma exceção —, ele não as menosprezava: “Trata-se de um ato revolucionário dos camponeses, especialmente dos índios, o fato de se comportarem como se termos como direito, liberdade e justiça se aplicassem a eles”.

Na Colômbia, Hobsbawm debruçou-se sobre La Violencia, como é conhecido o período de guerra civil (1948-1958) entre grupos ligados aos partidos Liberal e Conservador, que dominavam a política do país desde o século 19. Ele queria entender por que a revolução potencial, que explodiu por “combustão espontânea” depois do assassinato, em 1948, de Jorge Eliécer Gaitán, o cacique liberal influenciado por ideias do New Deal, havia sido frustrada, desembocando em anarquia.

Nos anos 80, examinou as primeiras negociações, fracassadas, entre o governo e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), originadas de grupos comunistas de autodefesa formados durante La Violencia. No momento em que a guerra às drogas esquentava, sugeriu que seria uma solução mais fácil legalizá-las: “Deixados de lado e aos princípios de Adam Smith, os consórcios de investidores de Medellín não se considerariam mais criminosos do que os empreendedores holandeses ou ingleses no comércio das Índias (inclusive o ópio)”.

No Peru, Hobsbawm estudou movimentos contra o latifúndio, em particular o que agitou a província de La Convención, próxima a Cusco. Contra parte da esquerda, defendeu abertamente o governo do general Juan Velasco Alvarado, que deu um golpe em 1968 com um programa de nacionalização e reforma agrária. Ainda que enumerasse razões para um possível fracasso de Alvarado, acreditava que os militares eram a “melhor chance” para o futuro do Peru. “É fácil pensar em regimes peruanos que os socialistas aprovariam com mais entusiasmo, mas nenhum deles parece provável.”

Em Tempos interessantes (Companhia das Letras), sua autobiografia publicada em 2002, Hobsbawm conta que virou comunista pelo resto da vida nos meses que viveu em Berlim, no início dos anos 1930. Adolescente, foi recrutado para a associação de secundaristas ligada ao Partido Comunista da Alemanha. Sentiu o “êxtase das massas” na última manifestação antes de o partido ser banido por Hitler. Sua conversão definitiva à América Latina foi mais prosaica e epidérmica, e ocorreu entre feiras nordestinas em São Paulo, camponesas aimarás na Bolívia e “infindáveis e silenciosas colunas de índios do lado de fora do escritório da Federação Camponesa em Cusco”. Por toda parte, a desigualdade estava estampada na diferença entre a cor da pele das autoridades e acadêmicos que o recebiam e a do povo na rua.

O governo Allende foi um teste sobre a disposição da burguesia em respeitar a legalidade quando esta não funcionava mais a seu favor

Ele entrou então no labirinto de “um continente feito para minar as verdades convencionais”, e só encontraria a saída se entendesse que os conceitos criados na Europa não funcionavam cá como lá. “Nos termos em que em geral analisamos os fenômenos políticos, a região simplesmente não faz sentido”, diz. Na América Latina, socialistas usavam retórica mais revolucionária do que comunistas, e numa suposta democracia liberal, o Uruguai, o Partido Colorado ficara cem anos no poder. 

Em palestra para a BBC, o historiador explica que o fenômeno político latino-americano por excelência era o populismo: “Um movimento de massas dos pobres contra os ricos, mas apoiado igualmente por militares e intelectuais, ao mesmo tempo — se os termos não forem demasiado enganosos — nacionalista e socialmente revolucionário, às vezes mal ou quase nada organizado, em geral construído ou moldado em torno de algum demagogo ou figura de líder”.

Em vários textos, o historiador discute a presença de relações sociais feudais ou neofeudais na América Latina, tema quente na época. Estudiosos brasileiros não são mencionados nesses ensaios, embora o debate sobre a suposta natureza semifeudal da sociedade no Brasil tenha mobilizado intelectuais a partir dos anos 1940, com implicações políticas importantes. Contra a linha oficial do Partido Comunista Brasileiro, que seguia a interpretação da Internacional Comunista, Caio Prado Jr. negava esse semifeudalismo, cujo corolário programático, antes de se pensar em socialismo, era uma aliança com a burguesia nacional para uma “revolução democrático-burguesa”.

No relato da passagem pelo Brasil em 1962, menos de dois anos antes da queda de João Goulart, ele parece intrigado com essa possibilidade: descreve uma burguesia “confiante no futuro do Brasil e do seu poder para superar os latifundiários feudais e tornar-se independente dos Estados Unidos”, além de disposta a “fazer causa comum com operários e camponeses para isso”. Precavido, acrescenta: “é um país muito estranho para previsões de visitantes casuais”.

O historiador é mais rigoroso nos dois artigos sobre o governo de Salvador Allende, que estão entre os melhores do livro. Ainda que apaixonado pela possibilidade de uma transição pacífica para o socialismo, faz uma análise exigente da Unidad Popular, a coalizão no poder no Chile, destacando as disputas internas como um fator de paralisia. Depois do golpe de 1973, porém, Hobsbawm conclui que o governo Allende “não cometeu suicídio, foi assassinado”. Era um teste “da disposição da burguesia de respeitar a legalidade quando a legalidade e o constitucionalismo não funcionam mais a seu favor”. 

Nos anos 1990, a esperança de Hobsbawm voltou a ser despertada pela ascensão do PT, que deveria alegrar “todos os velhos corações vermelhos”. “É um exemplo tardio de um partido trabalhista e de massa clássico, como os que emergiram na Europa antes de 1914”, definiu o historiador, que carregava um chaveiro com a estrela petista. Depois de abrir um champanhe em sua casa para comemorar a eleição de Lula em 2002, ele reservou o espaço habitual para o ceticismo: “Agora, suponho que devemos esperar mais uma vez sermos decepcionados”, disse a Leslie Bethell.

Num artigo de 1971 sobre o peruano Velasco Alvarado, Hobsbawm escreveu que “a história da esquerda latino-americana (com raras exceções como Cuba e Chile) foi quase sempre ter que escolher entre uma pureza sectária ineficaz e a melhor entre vários tipos de soluções ruins: populistas civis ou militares, burguesias nacionais ou qualquer outra coisa”. É de especular se, com os eventos recentes no Brasil e em outros países da região, ele enterraria de vez essa opção.

A revolução que Hobsbawm esperava deu o bolo, não apareceu — “estrangulada pelos militares nativos e pelos Estados Unidos, mas também pela debilidade, divisão e incapacidade interna de cada país”. Ao escrever sobre a Colômbia dos anos 1980, ele cita uma direita radical, “que não traça linhas nítidas entre assaltantes, frequentadores de bares gays, organizadores sindicais e a conspiração comunista mundial”. Quando lamenta, em 2002, a falta de mudanças profundas na América Latina, diz que a região “permanece como foi durante mais de cem anos, cheia de constituições e juristas, mas instável em sua prática política”.  

Quem escreveu esse texto

Claudia Antunes

É jornalista.

Matéria publicada na edição impressa #7 nov.2017 em junho de 2018.