![](https://19930cd4.rocketcdn.me/wp-content/uploads/2018/10/articles-NNwBo1ZoZZIdwjp.jpg)
História,
Selfies com Garibaldi
Autor francês demonstra que o fenômeno das celebridades começou no século 18, muito antes da cultura de massa
29out2018 | Edição #16 out.2018Vivemos, e a constatação é banal, na era das celebridades. A sede por informações a respeito de cantores e artistas de telenovela e jogadores de futebol parece inesgotável. A caça às selfies e as multidões dos “seguidores” no Facebook e no YouTube intensificam, sem dúvida, o que há algumas décadas se traduzia em busca de autógrafos e na assinatura de revistas de fofocas como Caras.
O fenômeno é habitualmente identificado com o advento da cultura de massa, em especial a partir da segunda metade do século 20. Teóricos como Edgar Morin associaram-no ao cinema, capaz de criar uma nova “mitologia”, com suas divindades “olímpicas”, inacessíveis.
Nada disso, afirma textualmente o francês Antoine Lilti, da École des Hautes Études en Sciences Sociales. A invenção da celebridade prova com abundância de detalhes que todo esse sistema de fofocagem, de trivialidade e de sucesso efêmero estava em pleno funcionamento já no século 18.
Em 1762, o grande ator inglês David Garrick (1717-62) teve um retrato seu exposto na Royal Academy de Londres. A obra de Reynolds foi copiada treze vezes para ser gravada em chapa; daí se tiraram cópias pequenas, vendidas como recordação a preço de banana, utilizadas em seguida para ilustrar embalagens de tabaco.
Três testículos
Em 1780, em Paris, dois comerciantes abriram uma loja de retratinhos de personalidades célebres. Reconheça-se, em favor do Século das Luzes, que eram em sua maioria escritores e políticos, como Voltaire, Rousseau e George Washington. Mas também havia quadrinhos de uma certa Madame de Saint-Hubertin (“vedete da Ópera”, esclarece o autor) e da famosa cortesã Rosalie Duthé.
Vida sexual? As fofocas não paravam, e eram comercializadas em panfletos. Um cantor castrado, rival de Farinelli, surpreende o público ao se tornar pai de três filhos. Surge a estranha teoria segundo a qual ele teria um terceiro testículo, que se ocultara das vistas dos responsáveis pela cirurgia — que, bem entendido, garantiu de todo modo que sua voz se mantivesse aguda ao alcançar a maturidade.
Mais Lidas
A visita de Benjamin Franklin a Paris, depois de sua participação na independência americana, foi um sucesso. A bonomia e a simplicidade republicanas faziam saudável contraste com as maneiras corruptas e exclusivas da sociedade aristocrática.
Ao mesmo tempo, já se manifestavam os sinais de uma nova “distinção”, a da celebridade. O próprio Franklin se diverte com a quantidade de imagens suas, que serviam para enfeitar tabaqueiras e até mesmo anéis. Ele diz que seu rosto se tornou “tão conhecido quanto a face da lua”, de modo que, se quisesse fugir do país, seria identificado de pronto.
O desejo de encontrar pessoalmente uma figura famosa não tinha relação com o conhecimento que se pudesse ter a respeito de seus méritos. Jean-Jacques Rousseau, que Antoine Lilti aponta como autor da frase “falem mal, mas falem de mim”, logo se cansou de ser célebre.
“Eram oficiais ou outras pessoas que não tinham nenhum gosto pela literatura, e cuja maioria não havia sequer lido meus escritos, mas que não deixavam, segundo diziam, de percorrer trinta, quarenta, sessenta, cem léguas para vir ver e admirar o homem ilustre, célebre, muito célebre, o grande homem etc.”
A quantidade de exemplos e evidências oferecida por Lilti é esmagadora, e prossegue pelo século 19. A visita do revolucionário italiano Giuseppe Garibaldi a Londres, em 1864, mobilizou centenas de milhares de pessoas, e criou um congestionamento que deixou carruagens paradas por horas a fio.
O interesse pela vida doméstica dos grandes homens, documentado pelos croquis de Voltaire usando camisola e pantufas, feitos por Huber em 1772, prossegue com a publicação, pelo jornal Le Figaro em 1858, de “cinquenta cartas inéditas, das mais picantes”, escritas pela atriz Rachel, da Comédie Française, recém- falecida.
Golpes publicitários se verificam desde o século 19, com a visita aos EUA de uma cantora lírica escandinava, aparentemente liberal em seus costumes; e com os relatos, provavelmente amplificados por um empresário italiano, dos desmaios femininos nos recitais de Liszt (1811-86).
Com tantas provas de que o culto às celebridades nada tem de recente, Lilti cuida de temperar o seu gosto pelo relato factual com algum caldo teórico. Distingue, o que é bastante útil, os conceitos de “glória”, “fama”, “renome”, “popularidade” e “celebridade”, valendo-se de um tratado escrito por Charles Duclos em 1751.
Aqui, como em outras passagens de A invenção da celebridade, o estilo do autor se torna algo cansativo. Ele abusa das paráfrases do texto que tem a comentar, como se sua análise estivesse detectando coisas que o leitor não é capaz de perceber. O tom é o da asserção, da concordância “inteligente”.
Gosto pela fofoca
Assim, Lilti cita um trecho em que Las Cases (1766-1842) explica seu projeto de dar a conhecer os aspectos íntimos da personalidade de Napoleão, no livro Memorial de Santa Helena. Diz Las Cases: “ninguém conhece as verdadeiras nuances de seu caráter, suas qualidades privadas… é esse grande vazio que pretendo preencher aqui, e isso com uma vantagem talvez única na história. Eu recolhi, dia após dia, tudo o que vi de Napoleão, durante os dezoito meses em que estive junto de sua pessoa”.
Sem ter muito o que dizer, Lilti comenta: “Las Cases afirma sua presença, a subjetividade de seu olhar e de sua narrativa. A celebridade é um espetáculo, público e íntimo ao mesmo tempo; ela implica, portanto, um espectador”. Arrã.
A invenção da celebridade acerta ao prover elementos concretos para uma polêmica teórica de grande interesse. Lilti não apenas critica os teóricos da cultura de massa contemporânea mas também as projeções, feitas especialmente pelo filósofo Jürgen Habermas (1929), de um passado ideal em que o debate público não estava deturpado pela produção industrial do entretenimento e da informação.
Publicado em 1962, o livro Mudança estrutural da esfera pública (Unesp, 2014) já foi, sem dúvida, objeto de contestações. As pesquisas de Robert Darnton, por exemplo, mostram a preponderância da literatura popular, da autoajuda e da vulgar libertinagem nas leituras dos contemporâneos de Rousseau, Voltaire e Diderot.
Uma contestação dessa tese seria a de que pelo menos as multidões do passado estavam atrás de retratos de Washington e de autógrafos de Byron, não de selfies com Neymar ou manuscritos de George Harrison. Mas também Sartre e Stephen Hawking têm sido objeto de adoração recente; há celebridades para todos os gostos.
Matéria publicada na edição impressa #16 out.2018 em outubro de 2018.
Porque você leu História
Antifascismo histórico e humano
Biógrafo de Mussolini, Antonio Scurati une histórias célebres e anônimas de resistência ao horror e explica o poder de sedução de autocratas atuais
JANEIRO, 2025