História,

Sangue, suor e lágrimas

Monumental e atordoante, estudo de historiador austríaco traça as origens da desigualdade, da pré-história a nossos dias

01set2020 | Edição #37 set.2020

Em julho de 1957, Harold Macmillan, o último primeiro-ministro britânico nascido na era vitoriana, fez um dos discursos políticos mais famosos do pós-guerra. Em comício na cidadezinha de Bedford, Macmillan transformou a animação com o baixo desemprego e o crescimento salarial em um slogan que ficou para sempre associado ao seu governo: “Sejamos francos, a maior parte de nós nunca viveu tão bem”, disse. Em 1959, Macmillan levou os conservadores à terceira vitória eleitoral seguida, com maioria acachapante. Em 2020, qualquer líder político ocidental que falasse algo parecido seria ridicularizado.

Desde a Grande Recessão, pelo menos, é difícil fugir da impressão de que as angústias só se multiplicaram e o pessimismo se enraizou de maneira inelutável. As prateleiras dos livros de não ficção estão cada vez mais lúgubres — e com boa dose de razão. Para cada grande narrativa otimista sobre o progresso, há dúzias de lançamentos desoladores sobre mudanças climáticas, a morte das democracias ou a persistência da desigualdade em níveis que assustam americanos e europeus e que deveriam nos assustar também, se não estivéssemos tão resignados. 

Nessa última vertente, Violência e a história da desigualdade, do austríaco Walter Scheidel, alarga as fronteiras geográficas e o horizonte histórico dos debates para dobrar a aposta no pessimismo. O livro parte de duas perguntas singelas: como evoluiu a distribuição de renda e riqueza ao longo de toda a história humana? Que fatores foram capazes de promover reduções significativas na desigualdade? Para responder a elas, Scheidel — especialista em história antiga e professor na Universidade Stanford — varre uma bibliografia quilométrica, cobrindo desde a pré-história até o século 21, da América Latina ao Sudeste asiático. 

O resultado é monumental — e atordoante. Por vezes, a sensação é a de que o autor quis contar em detalhes tudo o que aconteceu entre o momento em que o macaco de 2001 — Uma odisseia no espaço joga o osso para o alto e aquele em que aparece a nave espacial. Enquanto Stanley Kubrick optou por uma das elipses mais ambiciosas do cinema, Scheidel produziu mais de quinhentas páginas abarrotadas de números, nomes e datas. 

Ainda assim, e apesar da abundância de notas de rodapé, a leitura é um prazer. Para ele, desde a invenção da agricultura, a história das sociedades humanas oscila entre períodos de desigualdade crescente — ou, no melhor dos casos, estável em patamar alto — e episódios abruptos e violentos de nivelamento. Scheidel argumenta que quedas fortes da desigualdade remetem invariavelmente a um ou mais entre quatro tipos de ruptura, sempre violentas, que chama biblicamente de “os quatro cavaleiros do nivelamento”: guerras com mobilização massiva da população, revoluções transformadoras, colapso estatal e pandemias letais. Nenhuma alternativa pacífica ou gradualista jamais chegou a resultados comparáveis, afirma o autor. 

Quedas fortes da desigualdade remetem não a alternativas pacíficas, mas a rupturas violentas

Os capítulos estão organizados didaticamente para tentar persuadir o leitor da tese do autor. A primeira parte percorre a história global para assinalar a aparente tendência inevitável de aumento da desigualdade em períodos de estabilidade, e dá um vislumbre inicial dos efeitos dos quatro cavaleiros. Na narrativa de Scheidel, o igualitarismo tribal de caçadores e coletores chegou ao fim com a agricultura e a domesticação de animais, que elevaram a produção para além da subsistência, originando um excedente passível de ser apropriado privadamente, além de direitos de propriedade transmitidos entre gerações. 

O desenvolvimento social e econômico que se segue aumentou tanto o volume do excedente quanto o grau de estratificação. A organização e a consolidação política e militar se alimentaram dessas desigualdades e, por seu turno, serviram para exacerbá-las, uma vez que a distribuição de recompensas materiais sustentou as coalizões que desembocariam nos Estados centralizados, ampliando-se ainda mais. A combinação de poder econômico e político — ou seja, controle sobre o capital e comando sobre a violência organizada — permitiu às elites dos impérios da Antiguidade atingir níveis inéditos de afluência, aniquilados apenas por catástrofes, como o colapso do Império Romano. 

Na Europa, o processo de reconcentração ao longo da Idade Média e do período feudal foi novamente interrompido por um nivelamento pavoroso, causado pela peste negra. Com o tempo, a recuperação demográfica, a urbanização, o crescimento do comércio e a liberação das forças de mercado voltaram a beneficiar os donos do capital, com nova longa tendência de aumento da desigualdade, gerando sociedades muito desiguais ao fim do século 19. A duas guerras mundiais e as revoluções comunistas novamente desfizeram tudo, dando ao século 20 seus traços mais marcantes, no que diz respeito tanto ao número terrível de mortos quanto ao caráter relativamente igualitário de grande parte dos países capitalistas desenvolvidos, do bloco soviético e afins. 

Cavaleiros do nivelamento

Em seguida, Scheidel se dedica a explicar um por um os cavaleiros do nivelamento, começando por um exemplo paradigmático de nivelamento para então expandir o foco para outras ocorrências históricas. O primeiro é a guerra, e Scheidel toma os dois conflitos mundiais, sobretudo o de 1939-45, como casos exemplares. Afinal, guerras por si sós não são necessariamente niveladoras: apenas conflitos com mobilização massiva da população reduziram a desigualdade. Por isso, exemplos pré-modernos são escassos. 

O segundo cavaleiro é a revolução. Mais uma vez, trata-se de uma figura tipicamente moderna: o autor privilegia a Revolução Russa de 1917 e, em menor grau, as outras revoluções comunistas e socialistas que eclodiram mundo afora. Períodos anteriores não fornecem nenhum exemplo tão claro, diz ele. Mesmo a Revolução Francesa parece ter redistribuído renda e riqueza apenas de modo muito limitado.

Já os dois últimos cavaleiros foram muito mais comuns no passado do que no mundo contemporâneo. O colapso social ou estatal é ilustrado pela queda do Império Romano, nos séculos 6 e 7, e pela derrocada da dinastia Tang, na China, no século 9. A Somália entre 1991 e 2006 é um raro exemplo atual. Quanto às pandemias, Scheidel dá protagonismo à peste, que matou entre 25% e 45% da população da Europa no século 14 e retornou em inúmeras ondas nos séculos seguintes. As epidemias de varíola, sarampo e outras doenças que aniquilaram os povos indígenas das Américas a partir do século 16 também têm destaque, bem como outras pestes e pragas. Nenhum exemplo contemporâneo é digno de nota, já que o nivelamento promovido por pandemias só ocorre quando a letalidade é tão alta que um percentual elevado da força de trabalho é eliminado, alterando a escassez relativa do trabalho com relação ao capital e elevando temporariamente os salários dos sobreviventes, conforme o modelo malthusiano.

Embora violência e morte sejam os denominadores comuns, cada um dos cavaleiros age por mecanismos específicos e historicamente contingentes, sempre intermediados por instituições. Nas guerras de mobilização em massa, por exemplo, os Estados viram-se obrigados a assumir o controle dos meios da produção para comandar o esforço de guerra e tiveram de lançar mão de medidas redistributivas para se legitimar e persuadir a população a cooperar. Já as revoluções comunistas tinham como objetivo declarado remodelar o Estado e eliminar — normalmente, de modo bem literal — os proprietários do capital. 

Em geral, o colapso estatal levou à perda do direito de propriedade por parte das elites extrativas e, em muitos casos, o jugo sobre outros povos. E a alta mortalidade durante a peste negra reduziu drasticamente o número de trabalhadores, mas isso só se traduziu em nivelamento nas regiões em que forças de mercado já estavam suficientemente desenvolvidas e os trabalhadores tinham mobilidade para ir atrás de melhores salários. 

Os últimos capítulos são dedicados a demonstrar que outros caminhos de equalização bem-sucedida praticamente inexistem na experiência histórica e, por fim, a especular sobre o futuro. Como se pode imaginar, depois de tanto sangue, suor e lágrimas, Scheidel não oferece consolo ao leitor que sonha com um mundo menos desigual. A única boa notícia é que, para ele, os quatro cavaleiros do nivelamento dificilmente vão dar as caras no curto e no médio prazo. 

A má notícia é que o autor vê muito mais tendências pró-desigualdade  que niveladoras no mundo de hoje, nos planos econômico, demográfico e político. O vasto cardápio de reformas sugeridas por políticos e acadêmicos de renome permanece politicamente inviável — e na verdade seria insuficiente para promover mudanças de fôlego. E o pior é que talvez seja melhor assim: a mensagem nas linhas finais é que todos nós que desejamos menor desigualdade econômica precisamos lembrar como, historicamente, tal objetivo só foi alcançado em meio a cataclismos inomináveis. Como constata tristemente Jasão, na Medeia de Sêneca, citado em uma das epígrafes do livro: “Quantas vezes a divindade inventou para mim remédios ainda piores do que meus perigos”. 

Poréns e entretantos

Chegamos, então, àquela hora da resenha em que é preciso achar defeitos. A tentação é bater no ponto mais óbvio: Violência e a história da desigualdade é um livro desolador e erudito, porém não inteiramente persuasivo. Mas e daí? Grandes interpretações originais sobre a história da humanidade raramente são tão convincentes quanto gostariam seus autores. Seria tolo medir o sucesso do livro por essa régua quando as hipóteses construídas são tão instigantes e quase todas as páginas trazem informações estimulantes. Um leitor ranzinza pode discordar totalmente da abordagem e ainda assim aprender à beça sobre o debate contemporâneo em torno da desigualdade, graças à honestidade intelectual de Scheidel. Ao contrário da maior parte dos que tentam vender grandes teses, o austríaco não se furta a citar pesquisas e dados que nem sempre se encaixam bem em seus argumentos, e volta e meia introduz nuances e ressalvas.

A contrapartida é que o texto dança entre afirmações fortes e poréns e entretantos que atenuam o que foi dito, mas que acabam esquecidos na hora das conclusões. Para pinçar apenas um exemplo, os dados são muito mais frágeis e ambíguos — especialmente para o século 19 — do que o fato estilizado, defendido pelo autor, de um grande aumento da desigualdade europeia da era moderna à contemporânea. Além disso, há deslizes conceituais — por exemplo, entre desigualdade de renda e desigualdade de riqueza, e entre nível e trajetória da desigualdade — que aparecem de forma suspeita em momentos-chave para permitir o encaixe da narrativa. E é impossível escapar da sensação de dois pesos e duas medidas: por exemplo, toda a generosidade vista quando Scheidel admite que nem sempre seus quatro cavaleiros provocam nivelamentos tão nítidos desaparece quando ele examina alternativas pacíficas, descartadas justamente por nunca chegarem perto de ter efeitos inequívocos.

Para este leitor, tais pecadilhos são mais do que perdoáveis, pois são inevitáveis em empreitadas do tipo. Grandes sínteses históricas não costumam parar de pé por muito tempo, mas são imprescindíveis para organizar o nosso mapa mental e propor novas perguntas. Nesse tipo de obra, o leitor já começa sabendo que vai encontrar exageros e forçadas de barra ocasionais, e os releva em troca de insights interessantes. O livro cumpre sua parte nesse contrato — e, ao fim e ao cabo, o caráter épico do escopo torna injustas as críticas pontuais. 

Dito isso, há três questões de mais fôlego que o livro suscita e não responde. A primeira é se faz sentido comparar a desigualdade de renda em sociedades de mercado contemporâneas com outros tipos de sociedade. Como já escreveu o economista Branko Milanovic, o sentido da riqueza varia em distintas sociedades. Afinal, em boa parte, as sociedades soviéticas parecem igualitárias porque o acesso ao poder e a bens de consumo dependia mais do pertencimento à Nomenclatura do que da renda monetária em si. 

Nas estimativas citadas, escravos aparecem mais como propriedade que como população

Questionamento parecido pode ser feito sobre sociedades escravistas. Scheidel reserva um tratamento sumário ao tema, sem jamais entrar no debate sobre se a mera existência de escravidão não introduz um tipo de desigualdade material qualitativamente distinto e incomparável ao das sociedades de hoje. Nas estimativas citadas, até onde foi possível descobrir, escravos aparecem mais como propriedade que como população, o que, evidentemente, serve para minimizar tanto o nível da desigualdade quanto os efeitos redistributivos da abolição.

A segunda questão é o pouco valor dado por Scheidel ao ineditismo do mundo parido pela Revolução Industrial. Boa parte da história econômica vê no século 19 uma imensa descontinuidade com relação aos séculos anteriores. O crescimento econômico moderno remodelou de cabo a rabo a experiência humana, mas o autor reconhece sua relevância só no que diz respeito à criação dos dois cavaleiros “modernos” do nivelamento — as guerras com mobilização em massa e as revoluções comunistas. Ora, será que as mudanças não foram mais profundas? Como apontaram muitos críticos, os efeitos niveladores das duas grandes guerras e a própria existência de revoluções comunistas não ocorreram no vácuo: dependeram de décadas de mobilização e inclusão na esfera política de grupos até então alijados dela. Scheidel minimiza essa onda reformista alegando que sem as guerras o nivelamento seria necessariamente bem menor. Como criticou o sociólogo Michael Mann, a própria revisão bibliográfica do autor mostra que a Segunda Guerra Mundial, em particular, foi um acontecimento sem precedentes em termos de nivelamento — e isso porque os vencedores impuseram aos vencidos seus arranjos sociais, os quais foram gestados domesticamente ao longo de mais de meio século de mobilização política e social e catalisados de forma irresistível quando irromperam as condições de guerra.

Por fim, a ênfase excessiva na violência mais ofusca do que revela. Ora, a violência em si é ecumênica: há no livro exemplos abundantes do uso da coerção com fins opostos aos da redistribuição. Scheidel destaca a frequência com que elites recorreram à pilhagem, à conquista e à violência para acumular bens e riqueza, e não só no período pré-moderno. Suas afirmações mais fortes, contudo, reiteram apenas a associação entre violência e redução da desigualdade.

Com isso, fica obscurecido um aspecto que me parece mais interessante para os fins do autor, isto é, como elites costumam ser bem-sucedidas em converter capital político em capital econômico (e vice-versa) e, com isso, proteger e reforçar sua posição. A maior medida desse sucesso é que os melhores exemplos de intervenções radicalmente redistributivas ocorrem somente quando a ordem social reinante se quebra e não é mais possível continuar como antes, algo também observado por Scheidel. A prevalência histórica de nivelamentos violentos não decorre de nenhuma associação perversa incontornável entre igualitarismo e ímpeto sanguinário, e sim do fato de que nenhum grupo social aceita docilmente seu próprio rebaixamento — muito menos elites que concentram mais recursos e maior capacidade de organização do que o resto da população. 

Um livro capaz de despertar tantas questões — e há muitas outras — sempre merece ser lido. Violência e a história da desigualdade tem tudo para se tornar referência. Se sua perspectiva sombria vai se confirmar, aí já são outros quinhentos. No mínimo, apostar no pessimismo tem dado bons resultados. E, mesmo em plena era de ouro do capitalismo europeu, o otimismo de Harold Macmillan teve vida curta: em 1963, a maré econômica e política já tinha virado e  ele foi obrigado a se demitir e a se aposentar em meio a conflitos com seu próprio partido. 

Quem escreveu esse texto

Pedro H. G. Ferreira de Souza

É pesquisador do Ipea e autor de Uma história de desigualdade: a concentração de renda entre os ricos no Brasil (1926-2013), pela editora Hucitec.

Matéria publicada na edição impressa #37 set.2020 em julho de 2020.