Desigualdades,

Dar dinheiro aos pobres

Desde 2003 construímos um programa de transferência de renda maciço e bem focalizado, eficiente e não clientelista

01jul2023 | Edição #71

Em maio, o IBGE divulgou os dados de 2022 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), principal fonte de informações sobre pobreza e desigualdade no país. À primeira vista, os números foram tão bons que nem pareciam vir do Brasil: entre 2021 e 2022, a renda per capita cresceu cerca de 5%, a desigualdade medida pelo coeficiente de Gini despencou outros 5% e houve recuo no percentual de pobres para todas as linhas de pobreza mais comuns. Se adotarmos como referência a (baixa)
linha de elegibilidade do Bolsa Família (R$ 218 mensais por pessoa), a redução foi de mais de 3 pontos percentuais, o que implica 7 milhões de pessoas a menos abaixo da linha de pobreza em comparação com 2021.

Os dados repercutiram muito pouco. Em vez de fanfarra, só o som de grilos. Fora do período eleitoral, o bolsonarismo se importa tão pouco com a redução da pobreza que nem tentou aproveitar a chance de se vangloriar um pouquinho. Patriota acha feio o que não é boi, bala e Bíblia — o que, por vias tortas, acaba sendo um elogio à nossa democracia. Afinal, um governo abertamente avesso à redistribuição promoveu uma expansão sem precedentes da política pública mais redistributiva que temos, em um momento crítico de um país que emendou uma década de recessão, estagnação e pandemia.

O Auxílio Brasil foi mal desenhado, mal planejado e nitidamente eleitoreiro, mas ao menos garantiu bem-estar mínimo às massasempobrecidas e entregou um aumento do gasto assistencial reclamado há muitos anos pelos que acompanham essas políticas de perto. A competição eleitoral realmente é uma bênção: para perceber o valor do voto popular, basta ver as medidas tomadas por aquela turma em 1964 ou a própria conduta do governo Bolsonaro até meados de 2021. 

Já na grande imprensa a cobertura foi só um pouco menos tímida, prevalecendo a interpretação de que os resultados positivos foram somente um espasmo insustentável provocado pela gastança desavergonhada de um governo tenebroso em busca da reeleição. É um ponto de vista razoável e, de fato, boa parte dos indicadores sociais ainda está em patamar semelhante ao de 2019, muito distante do pico histórico de 2012-2014. Até aí dá para assinar embaixo: o futuro anda tão complicado que nossa luta atual ainda é para voltar ao passado. O que não é justificável é que o tóxico legado político e econômico do bolsonarismo eclipse as conquistas das políticas de transferência de renda.

Redução ilegítima da pobreza?

Infelizmente, em vez de bater nos pontos fracos do Auxílio Brasil — o valor fixo por família, a falta de metas claras de público, os problemas de focalização decorrentes do desleixo com o Cadastro Único —, nossos jornalões preferiram tratar a redução da pobreza por meio de transferências como algo ilegítimo em si mesmo. “Brasil está menos desigual porque triplicou Bolsa Família, não porque melhorou”, proclamou a chamada da Folha de S. Paulo (e nem é bem o caso, porque a recuperação do mercado de trabalho ajudou à beça). No Estadão, um editorial com sabor sessentista caprichou tanto na naftalina que chegou a cometer um “não basta dar o peixe, é preciso ensinar a pescar”, para depois emendar que “a distribuição de riqueza sem o seu crescimento só gera mais pobreza”. Udenismo por udenismo, pelo menos o Lacerda era bom de retórica. 

Por que tanta má vontade? A consequência imediata das transferências de renda é — quem diria? — colocar dinheiro nas mãos das famílias mais pobres. São trabalhadores informais, crianças e outros grupos vulneráveis, que historicamente foram negligenciados pelo nosso sistema de proteção social. A criação do Bolsa Família em 2003 foi um salto gigantesco no processo que a cientista política Marta Arretche chama de “inclusão dos outsiders”, isto é, de expansão, ainda muito imperfeita, da proteção e das oportunidades para a metade mais pobre da população desde 1988. Construímos um programa maciço e bem focalizado, eficiente e não clientelista, que, na maior parte do tempo, teve sua efetividade no combate à pobreza comprometida somente pela falta de orçamento. Agora não é mais o caso, e a redistribuição é para valer. Ao menos nessa área, o país melhorou, e não há por que ter vergonha. É uma conquista da nossa própria dinâmica eleitoral. 

A maior parte dos países desenvolvidos mantêm políticas semelhantes ao Bolsa Família

Condicionar a legitimidade dessas transferências à sua capacidade de atingir outros objetivos — turbinar a economia, resolver nossa escassez de capital humano e afins — é um contrassenso e sugere uma necessidade contínua de validação que não encontra eco na realidade. (Talvez por isso o pessoal esteja até hoje procurando a mítica candidatura competitiva da terceira via.) Politicamente imbatível, o aumento do gasto assistencial se tornou o novo normal no governo Lula, a quem cabe agora aprimorar o programa para maximizar seus efeitos. Se for possível casar a eficiência do antigo Bolsa Família com o orçamento do atual, os pobres brasileiros (que esperam desde 2015 que algo de bom venha do mercado de trabalho) melhorarão de vida. O maior risco é que a partir de 2024 o jogo duro do Centrão acabe rebatendo no encolhimento do programa. No momento, o que é incontornável é que a vida de milhões de brasileiros estaria muito pior se o Bolsa Família seguisse congelado em termos reais, como ficou entre a recessão e o início de 2020.

Será o suficiente? Claro que não. Nenhuma política isolada vai transformar a Zona Franca de Manaus no Vale do Ruhr amazônico (e olha que o Vale do Ruhr anda meio caidinho). E mesmo que o país decole, a pergunta inversa será igualmente válida: dá para esperar que o crescimento resolva a pobreza? É só fazer as contas: sem redistribuição, se a renda per capita crescer sempre 5% ao ano — algo tão provável quanto as Americanas desbancarem a Amazon —, então lá por volta de 2060 o Brasil conseguiria finalmente erradicar a pobreza medida pela linha que o Banco Mundial toma como referência para países com nosso nível atual de desenvolvimento (R$ 640 por pessoa por mês). Se o crescimento for somente de 2% ao ano, teremos que esperar praticamente um século (a não ser que o apocalipse climático chegue antes). Enquanto isso, os brasileiros mais ricos desfrutam de padrão de consumo europeu. 

Nem o bolsonarismo teve a pachorra de propor essa combinação ao eleitorado. Não é à toa que a maior parte dos países desenvolvidos mantêm transferências assistenciais para públicos semelhantes aos do Bolsa Família, e muitos deles gastam até mais do que nós em termos relativos. E é por isso que o Bolsa Família simplesmente não vai acabar, mesmo que o país engrene. Quanto mais ricas as sociedades, menor tolerância com a pobreza mais aguda. O ideal da emancipação dos beneficiários é bonito, e devemos testar políticas que ajudem nisso, mas em última instância o que o programa faz é garantir uma renda mínima a um público imenso que possui poucos recursos e ainda está sujeito a uma infinidade de choques individuais e coletivos. Não menosprezemos isso. 

Quem escreveu esse texto

Pedro H. G. Ferreira de Souza

É pesquisador do Ipea e autor de Uma história de desigualdade: a concentração de renda entre os ricos no Brasil (1926-2013), pela editora Hucitec.

Matéria publicada na edição impressa #71 em maio de 2023.