História,

Os inventores da roda, da cerveja e do texto

A Mesopotâmia funcionou como uma espécie de laboratório da civilização, testando distintas formas de religião, economia e governo

15nov2018 | Edição #10 abri.2018

Se, por definição, a história se inicia com a escrita, uma longeva metade dela é ocupada pela trajetória de ascensão e queda da antiga Mesopotâmia. Os primeiros esboços do que viria a ser a escrita cuneiforme (sinais em forma de cunha, gravados com estilete de junco em plaquinhas de argila) surgiram nos últimos séculos anteriores a 3.000 a.C.

Aproximadamente 2.500 anos depois, a conquista de Ciro, o Grande, imperador da Pérsia Aquemênida, em 539 a.C. daria fim ao apogeu da Mesopotâmia, simbolizado pela independência da Babilônia. Portanto, a vitória de Ciro está tão distante de nós quanto estava Ciro da origem da civilização que ele derrotou, inaugurando séculos de disputas geopolíticas.

Em décadas recentes, a região entre os rios Tigre e Eufrates entrou mais uma vez em evidência. As guerras Irã-Iraque (1980-88) e do Golfo (1990-91), a Operação Tempestade no Deserto (1991) e, já nos anos 2010, o combate ao Estado Islâmico são apenas alguns exemplos. Seria ilusório imaginar que essas guerras modernas nada devem ao passado mesopotâmico. Babilônia, hoje um parque arqueológico reconstruído no Iraque de forma questionável pela ditadura de Saddam Hussein (1979-2003), havia sido conquistada pelo império persa, símbolo do antigo poder que governava o território do atual Irã.

O que sabemos da longa trajetória de conflitos e realizações na região se deve em especial ao trabalho de tradução das tabuletas de argila que sumérios, acádios, babilônicos e assírios usavam para escrever. São registros de estoques, hinos, lamentos e narrativas as mais diversas. As escavações arqueológicas ainda estão longe de ter explorado suficientemente esse território em constante ebulição.

O jurista italiano Giuseppe Chiovenda dizia que o documento escrito é como uma voz fixada duradouramente — um eco antigo que ainda hoje podemos escutar. Em 1872, essa voz distante, até então indecifrada em uma tabuinha de argila guardada nos arquivos do Museu Britânico, chegou até George Smith.

De origem pobre, George era um apaixonado por assiriologia: aprendeu sozinho a ler a escrita cuneiforme. Ao se debruçar sobre um fragmento de tabuleta de argila, datado de cerca de 700 a.C. e encontrado em Nínive (atual Iraque), George decifrou algo monumental. Ao se dar conta de que compreendia o que estava lendo, foi tomado por um frenesi e, para espanto geral, começou a tirar a roupa.

Dilúvio

Ele havia descoberto um fragmento da narrativa do Grande Dilúvio. Sim, aquele, enviado pelos céus para dizimar a humanidade, tendo se salvado apenas um homem escolhido e sua família. O homem foi instruído a construir uma arca para proteger os seus e perpetuar os animais, que entraram em casais na embarcação. Quando o dilúvio cessou, o homem soltou uma pomba, que logo retornou — havia água por todo lado. Mais tarde, terras surgiram, e assim a humanidade e os animais tiveram um novo começo. 

Mas o homem não era Noé nem o dilúvio era aquele narrado na Bíblia. Na Epopeia de Gilgamesh, narrativa fantástica escrita na antiga Mesopotâmia, o rei da cidade de Uruk encontrou Uta-napíshti, o único sobrevivente do dilúvio enviado pelos deuses para se vingar da humanidade. Gilgamesh procurava uma forma de viver para sempre, e a sua melhor chance estava no ancião. 

Ao demonstrar que no épico escrito mil anos antes da Bíblia já existia a narrativa de um grande dilúvio, com uma arca de animais e um homem escolhido pela divindade, George despertou, involuntariamente, um controvertido debate no final do século 19 sobre a Bíblia histórica e o papel das religiões. Estaria a Bíblia recontando um antigo texto mesopotâmico?

A educação desempenhava um papel importante na formação das elites. Podemos conhecer a rotina de estudo e a organização do ensino

A voz que se prolonga e perdura havia chegado até o futuro. Pouco a pouco, com o avanço do entendimento sobre a escrita cuneiforme e as línguas suméria e acádia, o passado da Mesopotâmia e de seu maior símbolo, a cidade da Babilônia, veio à luz.

Laboratório experimental

Em seu livro Babilônia: a Mesopotâmia e o nascimento da civilização, o jornalista Paul Kriwaczek afirma que a trajetória de ascensão e queda da antiga Mesopotâmia “funcionou como uma espécie de laboratório experimental da civilização”, testando, para depois preservar ou destruir, as mais distintas formas de religião, sistemas econômicos e de produção, formas de governo e de elaboração das leis.

O livro, baseado em ampla pesquisa, constitui uma introdução ao percurso histórico que se inicia com o surgimento das primeiras cidades sumérias, atravessa o período do império acádio e descreve a consolidação e queda do império babilônico. Mesopotâmia, na verdade, nunca foi o nome pelo qual os seus habitantes da Antiguidade designaram o território no qual construíram a sua história. Como se sabe, a denominação viria do grego, designando a região como sendo aquela “entre rios” — o Tigre e o Eufrates, que cortam as terras hoje no sul do Iraque.

Além da escrita e das primeira cidades, ali também a roda foi inventada, a astronomia se desenvolveu, os primeiros conjuntos de leis foram editados e a técnica de fabricação de cerveja foi criada. Kriwaczek apresenta em detalhes algumas das principais inovações científicas, administrativas, econômicas e culturais, desenvolvidas inicialmente nas cidades sumérias como Eridu, Uruk, Ur e Lagash. 

Na antiga Mesopotâmia surgiu não apenas o texto, mas também os primeiros documentos com indicação de autoria. Enheduana, sacerdotisa e filha de Sargão, o conquistador do império acádio, compôs hinos para templos sumérios, além de poemas de exaltação à deusa Inanna. Sendo assim, o primeiro autor da história é, na verdade, uma autora. E só sabemos disso através dessa “voz fixada duradouramente”.

A educação desempenhava um papel importante na formação das elites sacerdotais e administrativas. Já havia escolas, e podemos conhecer a rotina de estudo e a organização do ensino nos textos preservados em tabuletas de argila. Uma dessas narrativas retrata o dia a dia de um aluno na escola de escribas. Depois de chegar atrasado e ser repreendido pelo professor, o pai do aluno convida o mestre a ir jantar em sua casa. O professor é sentado em local de honra, recebe presentes que “em muito superam o seu pagamento” e, ao final da noite, declara que o futuro do aluno será brilhante.

Mas os registros escritos não se resumem a trocas de amabilidades entre professores e alunos. Desde o passado remoto, a região é marcada por uma sucessão de guerras. Kriwaczek descreve o conflito entre as cidades sumérias de Lagash e Umma, que está no origem de uma estela (monólito) comemorativa da vitória da primeira sobre a última em cerca de 2.450 a.C. Chamada de Estela dos Abutres, é atualmente exibida no Museu do Louvre. A poucas salas dali, porém criado a sete séculos de distância, está o Código de Hamurabi. 

A Estela dos Abutres

A peça que contém o conjunto das leis do imperador babilônico foi quebrada em três pedaços e hoje é apresentada de forma inteiriça. O visitante menos atento pode nem notar as rachaduras. A Estela dos Abutres, por sua vez, está despedaçada: apenas sete fragmentos foram encontrados. Se o Código de Hamurabi é um dos documentos mais conhecidos da Idade Antiga, a Estela dos Abutres, embora menos popular, possui a inegável relevância de inaugurar a representação por escrito da solução de um conflito. É considerado o registro histórico mais antigo já encontrado. Sem ela, a história da disputa entre Lagash e Umma talvez jamais pudesse ser contada.

A peça de calcário retrata, em um de seus lados, o rei liderando o seu exército durante a batalha, os primeiros registros sobre formações e equipamentos militares. No topo dessa face da estela, vários abutres carregam cabeças decepadas dos soldados de Umma. No outro lado, o deus Ningirsu aprisiona os sobreviventes de Umma em uma rede, sobre a qual está a representação do monstro Anzû: uma águia com cabeça de leão.

Essa dualidade entre a versão realista da batalha e sua narrativa mitológica oferece uma janela única para entender a sociedade da época. A vitória alcançada por Lagash não se resumiria a uma conquista militar, mas também a uma ação direta dos deuses.

A invocação da vontade divina para fazer a guerra não parou em 2.450 a.C. Kriwaczek abre o livro com dois outros momentos em que o divino enviou os homens ao combate mais recentemente. Na Primeira Guerra do Golfo, Saddam Hussein explicou que invadira o Kuwait seguindo instruções expressas: “Recebemos essa decisão quase pronta de Deus; […] nosso papel na decisão foi quase nulo”. Em 2005, em documentário exibido pela BBC, o ministro de Relações Exteriores da Autoridade Palestina afirmou que o então presidente norte-americano, George W. Bush, também seria guiado pelos céus: “Sou movido por uma missão divina. Deus dignou-se a me dizer: ‘George, vá combater aqueles terroristas no Afeganistão’. E eu o fiz; e então Deus me disse: ‘George, vá pôr fim à tirania no Iraque’. E eu o fiz”.

A ascensão e a queda da Babilônia ocupam o terço final do livro. O autor se dedica a demonstrar como um passado de esplendor foi arruinado por governantes ineptos e por uma persistente má fama que guarda poucas semelhanças com o que hoje sabemos da capital do império mesopotâmico.

A visão da cidade como a Grande Prostituta é fruto do período em que os judeus foram mantidos como prisioneiros. Ao deparar com as grandiosas construções do reinado de Nabucodonosor 2º, os judeus criaram a sua visão daquela cidade estranha, na qual reputadamente a altura do zigurate principal teria também feito surgir a figura bíblica da Torre de Babel.

Em suas Histórias, o historiador grego Heródoto registra o costume babilônico da prostituição sagrada, segundo o qual toda mulher virgem deveria, uma vez na vida, se prostrar na frente do templo da deusa do amor e aceitar ter relações sexuais com qualquer um que a escolhesse. O homem devia jogar no colo dela uma moeda de prata, de qualquer valor, “já que nenhuma lei regulava a prática”.

A ascensão e queda da Babilônia ocupa o final do livro. O autor se dedica a mostrar como um passado de esplendor foi arruinado por governantes ineptos

A mulher não podia se recusar e, em seguida, devia retornar para casa. Heródoto afirma que as mais altas e bonitas, escolhidas primeiro, iam embora rápido, enquanto “as feias podiam ter que esperar por um longo tempo, já que não haviam cumprido a sua obrigação. Na verdade, algumas ficavam no templo por três ou quatro anos”.

Essa narrativa é contestada por historiadores modernos, já que o Código de Hamurabi destaca a importância da virgindade da mulher para o casamento. O artigo 130, por exemplo, determina que “[s]e alguém viola a mulher que ainda não conheceu homem e vive na casa paterna e tem contato com ela e é surpreendido, este homem deverá ser morto, a mulher irá livre”.

O Cilindro de Ciro

A queda viria com a instabilidade política, que, ao dar fim à trajetória de independência da cidade, produziu um objeto que simboliza como poucos a história da região. Em um cilindro de argila do século 6 a.C. (conhecido como o “Cilindro de Ciro”), foi grafada, em escrita cuneiforme, uma declaração sobre as condições nas quais o governante persa se apossou da mítica cidade. A peça foi encontrada nas ruínas da Babilônia em 1879. Hoje no Museu Britânico, ainda é um dos símbolos do Irã. 

O texto enaltece a linhagem real de Ciro e denuncia a opressão a que o rei Nabonido submetia o povo da Babilônia. Em seguida, numa das passagens mais lembradas do cilindro, é dito que Ciro restaurou templos e santuários na Mesopotâmia e em outras regiões, permitindo que os escravos encontrados na Babilônia fossem libertados e que retornassem a seus territórios de origem, levando consigo estátuas e demais objetos religiosos. Descoberta em 1879, a passagem causou grande impacto por registrar de forma inédita o que seria visto como uma confirmação do episódio bíblico narrado no Livro de Esdras: Ciro, o Grande, teria libertado os judeus do cativeiro na Babilônia.

Outra interpretação que movimenta distintas opiniões sobre o papel desempenhado pelo Cilindro de Ciro enxerga nele um precursor das modernas declarações de direitos humanos. Além da exibição permanente de uma réplica do cilindro em sua sede em Nova York, a Organização das Nações Unidas (ONU) afirmou, em seu site, que o objeto contém uma “declaração feita por Ciro, o Grande, sobre a preservação dos direitos humanos nas cidades ocupadas após a captura da Babilônia em 539 a.C.”.

Essa ideia, além de anacrônica, confere ao texto finalidades que ele jamais poderia desempenhar. Se já soa inapropriada a referência aos direitos humanos quando o conceito era de todo desconhecido por aqueles que elaboraram o documento, um outro fator histórico nos impede de concluir que se trata de uma declaração de direitos avant la lettre: o seu caráter de propaganda da pessoa de Ciro. Ao ser indagado, em entrevista, sobre o que achava da designação de Ciro como um campeão dos direitos humanos, Tom Holland, autor de Fogo persa, disse que essa comparação era absurda já que “os antigos persas não eram exatamente os ancestrais dos sociais-democratas suecos”.

As múltiplas interpretações sobre essa peça dão prova da sua importância. A Babilônia se converteria em província do império persa aquemênida (uma satrapia) e nunca mais voltaria a ser independente. Os persas reinariam de 539 a.C. até 330 a.C., ano de sua derrota para Alexandre, o Grande.

Paul Kriwaczek morreu em 2011. Por 25 anos, produziu documentários e séries para a BBC. Nascido na Áustria e criado na Inglaterra, tinha formação em odontologia, falava oito línguas, inventava instrumentos musicais e desenhava as próprias roupas. Seus pais escaparam da Áustria durante a ocupação nazista — a fuga foi narrada pela mãe do autor em entrevista para o Imperial War Museum, e ali sua voz se fixou, duradouramente.

Quem escreveu esse texto

Carlos Affonso Souza

É diretor do Instituto Tecnologia e Sociedade (itsrio.org) e professor de história do direito na Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

Matéria publicada na edição impressa #10 abri.2018 em junho de 2018.