História,

O que quer, o que pode essa língua?

Caetano W. Galindo nos leva a um passeio pela formação do nosso português

01dez2023

O passeio que Caetano W. Galindo nos oferece percorre caminhos tortos, múltiplos. “A língua é minha pátria, e eu não tenho pátria, tenho mátria e quero frátria”, canta outro Caetano, no desejo, acompanhado pelo nosso autor, de uma identidade sussurrada e polifônica, livre, sempre em movimento. O passeio não desvia das cicatrizes. O que se anulou, apagou, violentou até agora com a narrativa da formação da nossa língua, história já batida, que aprendemos na escola: a língua portuguesa chegou e foi crescendo e nos absorvendo até que de repente nos víssemos completamente dela. Língua de Portugal, que dominamos tão pouco, última flor do Lácio.


Latim em pó: um passeio pela formação do nosso português, de Caetano W. Galindo

O passeio de Latim em pó ilumina a resistência, não nega a briga, celebra a invenção e lembra: não é bem assim. Chega perto e anda pelos nossos lugares, pela fala da gente. Escuta as cantigas, as canções, o funk e a bossa. Escuta o que anda nas cabeças e nas bocas das gentes, os que acendem velas nos becos, que estão falando alto pelos botecos, o dia a dia das meretrizes, o plano dos bandidos, dos desvalidos. O passeio é pela multiplicidade de sentidos e variedades do nosso português. Neste livro, não se anda em linha reta e no passeio conhecemos muita gente que levou muita porrada. Nosso porto, preto, português brasileiro. A língua-resistência das mães, tantas vezes estupradas, violentadas, caladas, apagadas. O passeio de Galindo ousa andar pelo que não tem certeza nem nunca terá, o que não tem conserto nem nunca terá, o que não tem tamanho. O nosso português, flor de Luanda.

Sobre ombros de gigantes: Jerá Guarani e Carlos Alberto Faraco, um pé na floresta, outro nos livros, vamos conhecer uma bebê. Luzia acabou de nascer, em alguma região do Brasil. “Um peso, mas também uma alegria”. Vamos passear com Luzia. Bem-vinda. Luzia pode ter nascido em condições de extrema pobreza e privação. Ainda assim, seu desenvolvimento linguístico vai acontecer e “ela vai acabar ganhando o domínio do idioma dos seus pais, da sua comunidade, do seu país. Ou, na verdade, vai elaborar sua nova versão dessa língua”, escreve Galindo.

O que há são variedades do idioma. A da educação formal é apenas mais uma. A bebê, provavelmente, aprenderá português. E este é o primeiro assombro. “O acachapante monolinguismo” de nosso território. Vamos supor que Luzia tenha já vinte anos e resolva fazer uma viagem pelo Brasil.

É possível que Luiza entre num automóvel em Pelotas no Rio Grande do Sul, e uma semana depois desça em Roraima, tendo sido perfeitamente compreendida, ao longo dos quase seis mil quilômetros que percorreu, na mesma língua falada que em seu ponto de partida. Sotaques à parte, é claro.

Lôko.

Se Luzia fizer este percurso pelo continente africano, atravessaria centenas de zonas linguísticas e encontraria idiomas que nem sequer são parentes uns dos outros. Outro assombro: somos “uma ilha de falantes de português cercada por diversos grupos de falantes de espanhol (e outras línguas)”. Somos vistos por nossos vizinhos como aqueles que falam português. “E não é só deste ponto de vista externo: para nós mesmos essa identificação é importante. A língua portuguesa é parte central da nossa definição.” O que quer, o que pode esta língua, esta gente? Quem somos nozes?

Galindo se posiciona contra a narrativa pacificadora, do português que pegou das línguas originárias o nome das plantas; mais tarde, das línguas africanas, os nomes das comidas e daí se fez nosso português, “um tantinho diferente do que era”, um português bem temperado.

O autor tem um objetivo modesto: entender nosso roça-roça com a língua de Camões

Não. A história não é simples, não é indolor nem bem resolvida. “A história da implementação da língua portuguesa no nosso território é um drama.” Língua colcha de retalhos, colagem de caquinhos, Galindo diz não à língua monumento, e lê tanto a inscrição na pedra como o grafite.

“E isso altera tudo, transformando de mil maneiras o presente que uma criança vai receber ao aprender o português.” Luzia é um presente. E a língua que vai aprender, nosso português, um presente também.

Bem-vindas.

Luzia é uma pessoa que vem, e a língua que herda é o latim em pó, processado por milhões de pretos, pardos, amarelos, pobres, desprovidos, desconsiderados. “Ela continua uma história de vidas, de milagres”. O passeio percorre as nuances e Galindo tem um objetivo modesto: entender nosso roça-roça com a língua de Camões.

Iluminar o quanto de um passado muito antigo às vezes se esconde por trás de algo que, para nós, é tão presente quanto o ar à nossa volta. Elencar, também, as diferentes tradições, cultura e povos que contribuíram para a formação do nosso idioma. Há, escreve Galindo, “a família gigante que possibilitou que hoje você fale o que fala e fale como fala”.

Sem rasteiras

É claro que o objetivo não é modesto, mas a forma é sem dobras, rasteiras ou significados ocultos, difíceis de entender. Galindo se propõe a, nos ombros de mestres, todes citados em generosa lista de indicações de leitura, escrever um livro de divulgação sobre nosso português, e com isso, quem sabe, derrubar algumas couraças, muito rígidas e endurecidas por anos de mononarrativa, e muito complexo de vira-lata, como se esses bichinhos-mistura fossem piores que outros.

“Temos uma estranha e paradoxal tendência de desacreditar nossa posse do idioma”. Essa ideia de que ninguém fala certo no Brasil, seja porque o português é uma língua extremamente difícil, seja porque somos todos uns broncos, uns ignorantes.

Acontece que “as regras de uso de uma língua não podem ser mais determinantes que o coletivo de seus usuários”. A língua é de quem a fala, não do que se determina: “Se uma maioria expressiva de falantes se comporta de forma contrária ao que a regra prevê, isto aponta para a necessidade de alterar a regra”. As línguas mudam, e “nosso português mais fino é um pouco mais que um latim atrapalhado”. Ao passear pela senda convite de Galindo, ficamos talvez mais perto de nossa mátria, vária, latim em pó, coberta por cicatrizes e tão bela.

Cada vez que se conta a história do português bem temperado, aquela pacificadora, a violência se repete. Porque ser dona de si e poder ser e pertencer na variedade são princípios fundamentais. Caetanos, ambos, vão contar outra história. Uma história de deglutição. Vamos comer Caetano.

Quem escreveu esse texto

Luana Chnaiderman de Almeida

Escritora e professora, é autora de Os animais domésticos e outras receitas (Perspectiva).