História,
O papel da papelada
Arquivista destaca a relevância social da preservação de documentos pessoais e mostra que era digital põe em risco a memória coletiva
01jun2018 | Edição #12 jun.2018A humanidade pode ser dividida em dois grupos básicos: as pessoas que acumulam papéis, objetos e toda sorte de documentos, e as que se livram deles o mais rapidamente possível. Os arquivos pessoais desse último grupo se limitam aos documentos de identificação e àqueles que comprovam as relações com o Estado. Talvez incluam fotos armazenadas no celular, álbuns de infância ou vídeos de eventos sociais.
Já o primeiro grupo certamente tem mais problemas ao lidar com oceanos de papéis e artefatos, “gatilhos de memória”, fontes de consulta e tesouro de informação sobre a época, os amigos e os parentes. Na escala da sociedade, os arquivistas são os profissionais encarregados de manter o patrimônio documental, público e privado, que diz respeito a todos.
O software MyLifeBits, criado por Gordon Bell, armazena documentos de todos os gêneros
Recém-lançado no Brasil, Arquivos pessoais, estudo do arquivista Richard Cox, fala para os juntadores de papéis. Professor na Universidade de Pittsburgh e editor de revistas especializadas, em 2008 Cox reuniu no volume seus ensaios, artigos, aulas e comunicações em congressos. O tom coloquial captura o leigo nas discussões cotidianas, técnicas e filosóficas ligadas ao estudo dos documentos e à compulsão por colecionar, calçadas por autores das mais variadas extrações — arquivistas, bibliotecários, cientistas da informação, historiadores, linguistas, filósofos, ficcionistas, informatas, psicanalistas, críticos da cultura. Compromisso com a memória, dúvidas sobre o que guardar e cuidados necessários para manter arquivos pessoais e familiares estão entre os temas tratados.
Cox apresenta uma interessante galeria de personagens, como o inventor da escrivaninha, o teólogo e filósofo norte-americano Jonathan Edwards. Envolvido com movimentos de renovação religiosa, Edwards registrou de modo obsessivo, durante a vida inteira, não apenas suas ideias e iniciativas relacionadas com a peleja pela salvação, mas também observações sobre o ato de preservar documentos. Ficou famosa a escrivaninha, móvel inexistente na época, imaginada e construída por ele para armazenar manuscritos, com nichos para diferentes tamanhos de papel e estantes acopladas, que serviam como caixas de transporte de livros nas constantes mudanças que fez pelo país.
Davy Rothbart, editor da revista Found, desde a adolescência coleciona documentos e materiais encontrados na rua — diários, desenhos, gibis, testamentos, listas de compras, anúncios, trabalhos escolares e cartões-postais. Para ele, o conjunto é revelador de todas as possibilidades da experiência humana, um atalho para os nossos sentimentos mais genuínos.
Gordon Bell, pioneiro da internet e ex-pesquisador da Microsoft, vive a aventura de documentar eletronicamente as minúcias de sua vida cotidiana, produzindo um alucinado arquivo pessoal. Com uma câmera pendurada no pescoço, ele registra toda a sua movimentação diária, tendo reunido até 2007, conforme artigo da revista The New Yorker, cerca de 122 mil e-mails, 58 mil fotos, milhares de gravações de telefonemas, todas as páginas que visitou na internet, todas as mensagens que trocou desde 2003, todas as atividades da área de trabalho do seu computador, oitocentas páginas de histórico de saúde etc. Essa tralha foi reunida para pôr à prova um software, o MyLifeBits, criado por ele e disponível para compra, que armazena documentos de todos os gêneros, acolhe metadados, tem ferramentas de pesquisa e produz cópias automáticas.
Anticolecionador
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Na contracorrente, o anticolecionador John Freyer decidiu abrir mão de todos os seus bens e montou um site no qual inventariou os itens vendidos e os respectivos compradores. Além de discos e livros, as coisas mais absurdas — camisetas e meias usadas, talheres, um frasco de antisséptico bucal pela metade — encontraram novos donos, posteriormente visitados por Freyer, que foi checar a reciclagem de uso daqueles bens.
Seu projeto, batizado All my Life for Sale, gerou um livro autobiográfico sobre a aquisição de objetos e o apego a coisas, pessoas e lugares. A lista publicada no site configura um arquivo irreal, mas faz pensar nas escolhas do que guardamos, tão racionais quanto afetivas e inesperadas.
Cox parte do princípio de que documentos, por si sós, são apaixonantes para leigos ou profissionais, e fala sobre o impulso, que se amplifica quando se trata de documentos pessoais e familiares, de buscar rastros do passado. A tese traz à memória “O gosto do arquivo”, texto de Arlette Farge que descreve a mística do ambiente dos arquivos e das bibliotecas.
Nós, arquivistas, embora fascinados pelos documentos, não conseguimos comunicar à sociedade a importância do nosso trabalho, o que seria necessário para garantir alguma empatia pela tarefa de lidar com massas documentais superlativas, acumuladas pelo poder público, pelas instituições e por pessoas. Unidos pelo mesmo feitiço, dois personagens — o arquivista e o cidadão — devem fazer uma aliança para preservar arquivos pessoais e familiares. Eis a principal tese de Cox.
Cidadão comum
Arquivos pessoais desfrutam hoje de uma nítida valorização e são fontes incontornáveis para a pesquisa científica, por oferecerem uma visão “de dentro” das ideias, dos sentimentos e das impressões de seus titulares, revelando os caminhos da criação, os bastidores da vida política, cultural e artística e o espírito de um tempo. Mas o autor não está falando apenas dos arquivos de intelectuais ou de famílias de relevo social. Trata aqui do cidadão comum que, com a revolução tecnológica, se vê aparelhado para colecionar os registros de sua vida por razões de identidade, memória e valor sentimental.
A desafiadora proposta do autor é ampliar a missão do arquivista e colocar também os documentos das pessoas sob sua tutela técnica. Duas possibilidades se apresentam: recolher esses acervos às instituições ou construir uma parceria informal entre cidadão e arquivista, o que implica ampliar o papel social desse profissional, cuja tarefa — preservar o patrimônio material e simbólico da sociedade — é quase delirante.
Cox exorta a sensibilidade dos colegas, para os quais garantir a sobrevivência de documentos significa intervir na sua trajetória. Que riscos correm tais arquivos? Os papéis, as fitas magnéticas, as fotografias e outros artefatos migraram, desmaterializados, para o ciberespaço, e é quase esperada a perda de porções significativas desse patrimônio — afinal, é o que ocorre diariamente.
O cidadão, com seus arquivos cada vez mais incorpóreos, ou não tem consciência disso, ou simplesmente não se preocupa em lhes garantir sobrevida. Apesar do gigantesco aumento na produção de documentos, ocorrem também perdas monumentais, por negligência ou obsolescência tecnológica, entre outros fatores. A preservação, portanto, está na ordem do dia para todos nós.
Mas há outros aspectos tangentes. O autor provoca: “Qual foi a última vez que você se permitiu praticar a arte da correspondência pessoal?”. Cartas são preciosas fontes. Trazem informações para biógrafos e historiadores, e suas características físicas — o tipo de papel, a caligrafia, os erros ortográficos, as formas de tratamento — sempre têm muito a dizer. Talvez os diários antigos tenham semelhança com os blogs ou perfis em redes sociais de hoje, mas estes, por enquanto, permanecem em espaço inseguro.
A automatização nos teria roubado o hábito da conservação dos vários estágios de trabalhos escritos — originais com correções, sugestões do editor e todos os documentos intermediários que vão da concepção à prova final. Estamos perdendo a capacidade de acompanhar retrospectivamente o nosso passado. Quais documentos restarão para testemunhar a vida contemporânea? O patrimônio documental, nesse aspecto, está em franco declínio, e esta é mais uma justificativa para valorizar os arquivos pessoais.
A visão humanista de Cox denuncia um temor real pelo destino dos arquivos pessoais e familiares
Mas o que guardar? Para os arquivistas, é um tormento avaliar documentos nas instituições — estaria sendo descartado algo insubstituível? Por mais parâmetros que se criem, sempre restarão dúvidas. Nos arquivos pessoais, as incertezas são maiores, pois não há documentos “rotineiros”, no sentido técnico atribuído pela arquivística.
Mesmo aquilo que os historiadores descartam — arquivos históricos só guardam uma pequena parcela de fontes documentais — pode ter valor emocional e simbólico para determinadas pessoas. É uma questão para leigos, profissionais e instituições. Ao profissional que irá cuidar deles, o autor recomenda sensibilidade e formulação de critérios ampliados e flexíveis de avaliação.
A visão humanista e democrática de Cox, calçada por uma sólida vivência profissional, denuncia um temor real pelo destino dos arquivos pessoais e familiares, sujeitos à dispersão e ao desaparecimento físico e virtual. O que está posto para um observador norte-americano fica mais dramático no Brasil, onde é menor a tradição arquivística, mais pobre a produção historiográfica e onde são mais escassos os recursos materiais para a preservação cultural. É uma briga boa para todos nós.
Matéria publicada na edição impressa #12 jun.2018 em junho de 2018.
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