História,

Narrar para lembrar

As comoventes memórias de uma livreira judia em fuga durante a Segunda Guerra Mundial

23nov2018 | Edição #14 ago.2018

Da autora não temos fotografia nem relatos transmitidos por terceiros, apenas alguns documentos e um exemplar da primeira edição de seu livro, encontrado em 2010, em um sebo em Nice. Graças ao olhar atento de um bibliófilo, curioso com a capa e com o título Rien où poser la tête (nada onde apoiar a cabeça), o exemplar foi aberto e descobriu-se que se tratava do testemunho de uma judia polonesa em fuga no período da Segunda Guerra, e que fora fundadora da primeira livraria francesa em Berlim, no ano de 1921.  

Datado de 1945, o livro fora editado pela Jeheber, editora suíça. Setenta e um anos separaram, pois, a primeira edição suíça de sua edição seguinte, a francesa, publicada em 2016. No Brasil, a obra chegou este ano, pela Bazar do Tempo, e ganhou o subtítulo “relato de uma livreira judia em fuga na Segunda Guerra Mundial”, inexistente na edição original. O prefácio é do ganhador do Nobel de 2014, Patrick Modiano, que tem na ocupação da França pelas forças alemãs e no colaboracionismo francês temas igualmente centrais nos seus romances.

Um Preâmbulo datado de 1943-44 e redigido “na Suíça, às margens do lago dos Quatro Cantões” traz consigo um imperativo moral: “É dever dos sobreviventes prestarem testemunho para que os mortos não sejam esquecidos nem ignorados seus sacrifícios obscuros. Que estas páginas possam inspirar uma reflexão piedosa em homenagem àqueles que, extenuados ou assassinados, se calaram para sempre”. Impossível não recordar Primo Levi, no prefácio a É isto um homem?: “A necessidade de contar ‘aos outros’, de tornar ‘os outros’ participantes, alcançou entre nós, antes e depois da libertação, caráter de impulso imediato e violento, até o ponto de competir com outras necessidades elementares. O livro foi escrito para satisfazer essa necessidade em primeiro lugar, portanto, com a finalidade de liberação interior”. 

Seja para honrar os mortos, seja para tornar públicos os horrores cometidos, dividindo com o restante da humanidade esse peso inominável, a palavra parece ser, para ambos, o último reduto possível para o trabalho da memória traumática — como um favor a si e à humanidade, que até 1945 ainda soçobrava pelas mãos do totalitarismo e do genocídio.

Impressiona, apesar do drama vivido, como Frenkel e sua narrativa em primeira pessoa mantêm um grau de sobriedade, objetividade, e mesmo de distância em relação aos fatos, e acompanhamos mais os seus passos em fuga, a exterioridade de sua existência, que suas aflições internas. É o corpo e a luta por sua integridade o que está radicalmente em jogo, afinal. 

Berlim

Antes de acompanharmos as agonias de seu périplo pela França ocupada, temos acesso breve a seus anos de tranquilidade e permanência feliz junto aos livros, como a fundadora da primeira livraria francesa de Berlim. Nessas poucas páginas, vemos sua vocação de livreira, surgida logo na infância, sua primeira biblioteca doméstica, aos dezesseis anos, e a paixão pelos belos livros encadernados. Igualmente sua francofilia despertada pelos anos em que viveu em Paris para estudar e trabalhar, de 1914 a 1921. 

Françoise deixa a França, mas não o contrário, pois em 1921 ela se muda para Berlim e funda La Maison du Livre, por onde passaram Colette e Gide

Françoise Frenkel deixa a França, mas não o contrário, pois em 1921 ela se muda para Berlim e funda La Maison du Livre, espaço onde se encontrariam escritores, artistas, filólogos, professores e estudantes, com o interesse comum pela literatura e cultura francesas. Por lá passaram Colette, André Gide, André Maurois e muitos outros expoentes. 

A experiência alegre e festiva poderia ser um duplo, em solo alemão, da relatada pela livreira francesa Adrienne Monnier no livro Rua do Odéon — deságua na tragédia da ascensão do nazismo e da perseguição implacável aos judeus.

E não passa despercebida a desproporção dos relatos: apenas trinta páginas são dedicadas ao capítulo “A serviço do pensamento francês na Alemanha”, que narra sua atividade como livreira, sua bibliofilia e a convivência multicultural em sua livraria por dezoito anos (de 1921 a 1939), sendo as outras 185 páginas dedicadas à memória dos quatro anos de sucessivas fugas, esconderijos e perseguições (1939 a 1943). Como se a estrutura do livro espelhasse o acuamento das existências indesejadas e perseguidas pelo regime totalitário; a existência clandestina que aniquila as identidades, os desejos individuais e a vida pregressa. Seu passado como protagonista de uma vida plena em meio aos livros e à literatura é achatado e condensado pelo horror da perseguição, da desumanização e da perda de toda proteção jurídica, o que o filósofo italiano Giorgio Agamben chamaria de “vida nua”. 

Testemunha dos terríveis ataques em massa planejados aos estabelecimentos comerciais de judeus, em 9 de novembro de 1938, evento conhecido como Noite dos Cristais, Frenkel partiu da Alemanha, com a ajuda das autoridades diplomáticas, em 1939. Mas Paris, infelizmente, não seria o lugar “onde apoiar a cabeça”. Com a ocupação alemã, em 1940, sua existência estaria novamente ameaçada. É nesse ponto que começa realmente a saga como refugiada e a luta contra a captura e a deportação. 

Em maio de 1940 ela parte rumo ao sul da França, a “zona livre” definida pelo armistício e governada pelo regime colaboracionista de Vichy, embora para os judeus isso não significasse segurança, e o medo da deportação para os campos de concentração imperasse, principalmente a partir de 1942. 

Frenkel passa por Avignon, Vichy, Nice, Annecy, entre outras cidades, sendo Nice a cidade com a qual mantém laços estreitos, pelas amizades e redes de solidariedade entre refugiados e franceses não colaboracionistas (após o fim da guerra, sabe-se que Frenkel retornou a Nice, onde fixou residência e morreu em 1975). Por três anos e meio, esconderijos em apartamentos, quartos de hotel, um castelo no alto da montanha, tentativas de fuga fracassadas para a Suíça, um convento e até mesmo o cárcere precedem sua fuga para a Suíça, que acontece por um salto. Sim, um salto. 

Forçada a se separar dos livros após sua partida de Berlim, é ao livro, dessa vez como autora, que Frenkel retorna, quase imediatamente à sua chegada à Suíça. 

O livro: finalmente onde encostar a cabeça, um lugar no mundo.

Quem escreveu esse texto

Maíra Nassif

É mestre em filosofia e editora da Relicário Edições.

Matéria publicada na edição impressa #14 ago.2018 em agosto de 2018.