História,

Madiba e a Realpolitik

Memórias de Mandela revelam o expediente mundano de um mandatário pragmático

01dez2018 | Edição #19 dez.18/fev.19

Nelson Mandela brincava que seu período preso pelo regime do apartheid sul-africano equivalia a 27 anos de férias. Não que houvesse algo de prazeroso em estar encarcerado em locais gélidos, submetido a trabalhos forçados e afastado do convívio familiar. Seu ponto era outro: livre, ele precisava exercer seu papel de ícone 24 horas por dia, sem descanso, como símbolo da conciliação nacional e também como primeiro presidente da nova África do Sul.

Esse pai da nação está magistralmente retratado na autobiografia Longa caminhada para a liberdade, de 1994, em que narra sua juventude, o início da luta por democracia racial, os anos de prisão e a libertação. É à segunda parte da vida de Mandela fora das grades, menos charmosa, que A cor da liberdade se dedica.

Inicialmente, a ideia era conceber um segundo volume de memórias, centrado nos cinco anos da sua Presidência (1994-99). Ele, no entanto, deixou apenas alguns manuscritos com passagens marcantes de seu governo, sem formar um conjunto coerente. Coube ao escritor Mandla Langa reunir esses fragmentos, costurá-los e dar formato final à narrativa, incluindo contexto histórico e depoimentos de outras figuras importantes da transição democrática da África do Sul.

Trata-se, assim, de um misto de autobiografia e livro-reportagem, combinação arriscada em qualquer circunstância — e exponencialmente mais delicada quando o objeto é uma das figuras mais admiradas da história. Apesar disso, o resultado final é muito bom e oferece um panorama dos anos de Mandela no poder.

Desencanto

Mandela não se sentia à vontade dando expediente nos Union Buildings, o imponente conjunto arquitetônico construído em Pretória no início do século 20 para ser a sede do governo de um país que surgia da união de colônias britânicas e holandesas após a sangrenta Guerra dos Bôeres (1899-1902). Instalou-se ali não por revanchismo, mas pelo simbolismo de aquele monumento ao poder branco abrigar um presidente negro. 

Quando saiu da prisão, soube usar muito bem seu carisma e sua história de vida. Jornais cunharam o termo “Madiba Magic”, referência a seu apelido tribal e à sua capacidade de desarmar a agressividade alheia com um gesto ou palavra.

Como presidente, contudo, o espaço para esse toque mágico foi drasticamente reduzido. Sentado na cadeira mais importante do país, tinha de tomar decisões administrativas em salas fechadas, lidar com políticos vaidosos e ambiciosos, e tentar manter seu gabinete multirracial funcionando de forma mais ou menos coerente. Tudo isso enquanto manejava as enormes expectativas de uma população sedenta não apenas por liberdade, mas por uma melhora palpável das condições de vida.

O livro mostra como o Mandela presidente se revelou um líder duro, que chegava a ser imperial em certas circunstâncias — algo distante da imagem pública de ancião caridoso. Ele dava pouco espaço para o dissenso e não hesitou, por exemplo, em demitir a única pessoa no país cujo status talvez pudesse rivalizar com o seu: sua ex-mulher Winnie Mandela. Ela ocupava um posto no gabinete e criticou o governo publicamente no funeral de um policial negro morto por colegas brancos.

Mandela presidente se revelou um líder duro, distante da imagem pública de ancião caridoso

O objetivo primordial de Mandela durante os anos como presidente era  evitar a desintegração do país numa espiral de violência racial. Havia o ressentimento dos brancos, ainda com muitas armas nas mãos, e também a rivalidade entre grupos étnicos africanos — sobretudo dos Xhosa (sua etnia) com os Zulu. Por isso, apesar de ter terceirizado parte da administração para seu vice e sucessor, Thabo Mbeki, não abriu mão de controlar de perto o sensível trabalho das forças policiais.

Mandela gastou muita lábia para convencer o homem que o libertou, o ex-presidente Frederik De Klerk, a integrar seu gabinete de união nacional, como um gesto em direção à minoria branca. A experiência foi breve: De Klerk logo se cansou de seu papel de coadjuvante e abandonou o governo.

Talvez uma das grandes qualidades do livro seja mostrar que nem uma pessoa da estatura de Nelson Mandela podia tudo, e que algumas de suas ideias chegavam ao limite do estapafúrdio, sendo felizmente barradas por decisão de seu partido, o Congreso Nacional Africano (CNA) — como quando defendeu que o voto fosse concedido a partir dos catorze anos, em reconhecimento ao papel que estudantes tiveram na luta pelo fim do apartheid.

Disciplinado, Mandela submetia-se aos ditames do CNA, agremiação fortemente influenciada pelo modus operandi soviético. Quando era voto vencido, aquiescia. Tentou unificar o comando dos três Poderes, o que, apesar de fazer sentido prático e econômico, reabriria feridas históricas. Assim, o Congresso continuou a se reunir na Cidade do Cabo, e o Judiciário, em Bloemfontein. Pretória seguiu como sede do Executivo, conforme o acordo entre holandeses e britânicos que no início do século 20 possibilitou a unificação da África do Sul.

Ciente de suas limitações, Mandela escreveu: “Quando vencemos uma eleição, ocupamos o cargo. Não ganhamos o controle do poder público. Ganhar o poder público significa que temos de tomar o controle do serviço público, das forças de segurança — isto é, da polícia e das Forças Armadas; precisamos ter nosso pessoal nas telecomunicações, e assim por diante. Isso leva algum tempo para organizar”.

A frustração de se sentir melhor na pele de inspirador do que de gestor salta aos olhos. Embora tivesse direito a reeleição, Mandela deixou a Presidência após cinco anos — também um recado a ex-combatentes que se tornaram déspotas África afora.

Nelson Mandela ainda viveria catorze anos. Nunca escondeu que não tinha saudade do período em que a figura de pai da pátria precisou se converter na de administrador de carne e osso, preocupado com questões mundanas como horário de reuniões e metas que impunha a sua equipe.

Quem escreveu esse texto

Fábio Zanini

Jornalista, escreveu Euforia e fracasso do Brasil grande: política externa e multinacionais brasileiras da Era Lula.

Matéria publicada na edição impressa #19 dez.18/fev.19 em novembro de 2018.