Política,
Os algoritmos têm ouvidos
Quando as pessoas tiverem o próprio assistente virtual, seremos confrontados com vários problemas éticos
30ago2019 | Edição #26 set.2019A internet ultrapassou as fronteiras dos laboratórios de informática e entrou no cotidiano do cidadão comum há meros 25 anos, o que, em termos históricos, é semana passada. Nesse intervalo, ela foi primeiramente encarada com o espanto reservado às grandes novidades, depois virou motivo de euforia por seu infindável potencial e finalmente foi tomada pelo pessimismo em meio à desinformação e à invasão da privacidade.
O momento atual é de incerteza. Será possível domar a rede e torná-la uma aliada em diversos aspectos da vida pessoal e profissional? Ou o mundo novo que se abre terá traços das mais assustadoras obras de ficção científica? Essa encruzilhada perpassa O futuro foi reprogramado: como a tecnologia está transformando as leis, a política e os relacionamentos, de Carlos Affonso Souza.
A obra é uma coletânea das colunas que Souza, advogado especializado em governança na internet, mantém no uol. Nelas, o autor discute questões práticas de nossa relação com a rede e aborda tópicos antes impensáveis, como a popularização de simuladores eletrônicos de afeto e o direito à liberdade de expressão de assistentes virtuais: “A internet pode tanto ser um instrumento de liberdade como uma ferramenta de controle”, resume.
Embora seu texto seja leve e cheio de sacadas, o autor não se furta a contemplar os aspectos mais sombrios da rede. Talvez o maior exemplo seja a dependência crônica do smartphone. O aparelhinho, diz Souza, está criando uma legião de solitários, pois faz com que estejamos ao mesmo tempo, e de forma paradoxal, ultraconectados e apartados do restante da sociedade: “O celular virou a rota de fuga para todo pequeno momento de tédio, aborrecimento ou que simplesmente parece não merecer atenção integral”.
A indústria de joinhas e notificações escraviza o usuário, e o medo de ficar desconectado pode degenerar em pânico. “Economizar bateria é preciso, viver não é preciso”, ironiza. Uma das maiores revoluções, projeta o autor, será a dos assistentes virtuais. Eles já existem em alguns setores, como o bancário, mas seu impacto está apenas começando a ser sentido. Não deve demorar muito para cada um de nós ter um assistente virtual para chamar de seu, que marca compromissos e resolve problemas simples.
Assistentes da família
Futuramente, não será impensável assistentes de paciente e dentista conversarem de forma autônoma ao telefone, o que coloca um sem-número de questões éticas. À medida que a voz se torna menos robótica e o algoritmo vai sendo aperfeiçoado, será necessário ao assistente se identificar como tal, para não ser confundido com um ser humano? Ou passaremos a considerar os algoritmos parte da família?
Mais Lidas
Mas não há campo mais pedregoso para as novas tecnologias do que a política, como prova a centralidade que as redes tiveram nas eleições de 2018. Qualquer marqueteiro sabe que esse é um processo sem volta, embora ainda não esteja clara a velocidade com que a internet se tornará o meio dominante nas campanhas, relegando a tv a um papel coadjuvante. O fenômeno Bolsonaro não é facilmente replicável.
O que está claro, defende o autor, é que a linguagem da política está rapidamente caminhando para um novo modelo, em que o discurso tende à extrema simplificação. Memeficação é um termo que veio para ficar: “De certa forma, o veículo condicionou a mensagem. Mais importante do que um raciocínio concatenado é criar uma controvérsia, gerar um fato que estimule o compartilhamento e que possa ser facilmente sintetizado”. Já podemos ver — em gabinetes de Brasília e nas assessorias de movimentos da “nova política” — o profissional de memes trabalhando lado a lado com o porta-voz ou o assessor político.
Teremos, em alguns anos, campanhas eleitorais 100% memeficadas? Se chegarmos a esse ponto, os programas eleitorais de tv, um dia criticados por seu caráter simplificador, parecerão encíclicas papais em comparação.
O meme e a rede social são campo fértil para a desinformação — as fake news, no termo de uso corrente. É uma via de mão dupla. Em um sentido, talvez o de maior tráfego, está a mentira produzida em dose industrial por atores interessados, com objetivo eleitoral. Mas a via contrária também é importante. É o que o livro chama de “súbita especialização do amigo internauta”. Esse sujeito aparentemente inofensivo, que jamais teve intuito de prejudicar candidato “a” ou “b”, torna-se supremo conhecedor do assunto em voga naquele momento, e contribui para a desinformação.
Num episódio como a facada em Bolsonaro durante a campanha, deu-se um fenômeno curioso. Quase instantaneamente brotaram teorias de que o atentado teria sido armado, num movimento de internet sem coordenação aparente. O “amigo internauta”, como relata o livro, “na semana anterior era especialista em incêndios e agora, aparentemente, sabe tudo sobre ferimentos causados com instrumentos perfurocortantes”.
Tão persuasiva foi a teoria sobre a falta de sangue visível provocada pela facada ou sobre a facilidade com que o agressor chegou perto do então candidato que figurou até no discurso de líderes como Lula. Uma autêntica fake news a brotar de forma espontânea e não da cabeça de alguma mente maliciosa, talvez um prenúncio assustador do que vem por aí.
Apesar do tema muitas vezes árido, envolvendo um campo do direito em rápida mutação, o livro é escrito de forma clara. A legislação sobre proteção de dados, os direitos e deveres de usuários e provedores e a ética das redes sociais ainda não estão totalmente pacificados e são afetados pela emergência de novos parâmetros.
É bastante útil, por exemplo, que o livro apresente dicas de como não passar vergonha com fake news. Mas há uma derrapada importante do autor, quando tenta pontificar sobre uma área que não é de sua especialidade, a dos procedimentos da imprensa. Sua condenação da publicação de uma foto feita de forma clandestina — a de Bolsonaro na mesa de cirurgia logo após o atentado — se baseia no argumento raso de que não se pode recompensar o autor da imagem.
O interesse público envolvido e o fato de que à imprensa não cabe fazer juízo de valor de como o material foi obtido parecem não lhe ocorrer. Com exceção dessa escorregada, Souza consegue, num livro enxuto, oferecer um bom panorama do que podemos esperar agora que a internet entra em uma nova fase, mais tensa.
Matéria publicada na edição impressa #26 set.2019 em agosto de 2019.
Porque você leu Política
Visita ao epicentro da guerra
Um ano depois do 7/10: um ano de quê? A um ano do quê?
OUTUBRO, 2024