Flip, História,
Josefa e Jovita, as mulheres notáveis que foram à guerra no Brasil do século 19
Entre a ficção e a história, romance e ensaio perfilam heroínas brasileiras
01jul2019 | Edição #24 jul.2019Logo na abertura de um soneto conhecido e deslumbrante, Quevedo associa o amor à “luz resplandecente”, ao “ouro ardente” e a um “império”. Toda a beleza, grandiosidade e efusividade desse amor, porém, são mantidas aprisionadas num “breve cárcere”. Irresistível lembrar do poema, e de seu paradoxo, quando lemos Dona Josefa, de Ana Luisa Escorel, e Jovita Alves Feitosa: voluntária da pátria, voluntária da morte, de José Murilo de Carvalho. São histórias de duas mulheres do Brasil Imperial. Cerca de duas décadas separam, na cronologia, os dois relatos. Também a geografia e a origem social afastam uma personagem da outra.
As aproximações, no entanto, são inevitáveis — seja no texto, seja na vida. Inclusive porque ambas se movem na fronteira tênue da ficção com a história e hoje ressurgem com a força dos mitos ou dos símbolos. Ambas amaram pessoas e ideais e perceberam, a duras penas, que a luz excessiva das paixões, mais que iluminar, pode ofuscar. Não por acaso, na parte final do romance, Dona Josefa sai da prisão e aflige-se com a crueza do sol. Jovita vive 37 dias fulgurantes para depois apagar-se. Cárceres reais ou figurados as encerraram, junto com suas paixões, e as liquidaram.
Os dois livros assumem a fragilidade da documentação que chegou até nós
Jovita Alves Feitosa nasceu no Ceará, mas logo se mudou para o Piauí. Em junho de 1865, inconformada com as notícias que ouvia da Guerra do Paraguai — especialmente da forma como as mulheres do Mato Grosso eram tratadas pelos invasores —, tentou integrar, trajada como homem, um dos batalhões de voluntários. Mesmo descoberta, foi incorporada às forças e, no posto de segundo-sargento, embarcou para o Rio de Janeiro. O vapor passou por quatro estados. Mulher única entre tantos homens, Jovita era celebrada e reverenciada a cada porto. Na Corte, porém, a história desandou: a Secretaria de Estado dos Negócios da Guerra recusou seu engajamento e sugeriu que ela contribuísse com “os serviços compatíveis com a natureza de seu sexo”. Nada adiantou a insistência de Jovita, que recorreu sem sucesso até ao ministro da Guerra: ela poderia, respondiam as autoridades, trabalhar na enfermaria, sem armas e distante do combate.
Vinte e poucos anos antes, viveu em Minas Josefa Maria Roquete Batista Franco Carneiro de Mendonça, a Dona Josefa. Também ela nasceu longe do cenário da sua ação: a família vinha de Goiás e nas Gerais tinha terras, tinha gado, tinha fazendas. Dona Josefa tinha também ideias políticas e, para defendê-las, participou da Revolta Liberal de 1842. Derrotados os rebeldes, alguns morreram, outros foram para o exílio — seu filho, por exemplo. A Dona Josefa coube o cárcere, breve no tempo, longo na vida. Meses devastadores numa cela imunda, com urinol cheio, catre duro, muquiranas insistentes, friagem, insônia e uma ratazana morta no canto. Restava-lhe conversar com Salvador, preso que lhe trazia comida fria, e “puxar lotes de memória”: da infância, do casamento, das pequenas batalhas cotidianas — de melhor desfecho que o da política local —, da derrota.
Jovita, Dona Josefa. Ambas existiram, mas pouco sabemos de suas trajetórias. Os livros que as recuperam assumem a fragilidade da documentação que chegou até nós. José Murilo de Carvalho, com cuidado de historiador, alerta na abertura de seu estudo sobre Jovita: “As fontes são fragmentadas e de natureza variada. Apresentá-las em bloco desorientaria o leitor”. Antes disso já observara que a personagem “tem recebido a atenção de ficcionistas e historiadores, mais dos primeiros que dos segundos. Este livro pretende ser um esboço de biografia de Jovita, buscando distinguir, na medida do possível, fato e mito, sem esquecer que, de algum modo, a mistura dos dois faz parte da própria complexidade da personagem”. Ana Luisa Escorel, por sua vez, explica no posfácio: “Para enfrentar a escrita de Dona Josefa a primeira providência foi levantar uma bibliografia que apoiasse a verossimilhança ficcional, já que a narrativa tinha saltado imediata e perigosamente para a vida nem bem o tema do romance surgiu, antes mesmo de qualquer contato com o dado histórico”.
Compromisso com a verdade
Jovita Alves Feitosa é um livro de história. Dona Josefa é um livro de ficção. O que há de verdade em cada um deles? José Murilo de Carvalho recorre a uma biografia precoce de Jovita — escrita em 1865 e incluída nas primeiras páginas do livro —, a fontes jornalísticas, imagens e registros históricos e literários. Além de citadas no decorrer da análise, as fontes são apresentadas ao final de cada seção. Relaciona, assim, a vida de Jovita ao panorama histórico da época, lidando com os eventos da guerra e aproximando-a de outras mulheres que, dentro ou fora do Brasil, reagiram às limitações que lhes impunham. Preenche com interpretações os pontos cegos da trajetória corajosa e terrível da cearense. Desenha uma protagonista improvável e fugaz, que contém tanto o nacionalismo do seu tempo quanto um feminismo — algo inconsciente, mas ainda assim enfático — que talvez fale mais ao presente que ao tempo em que ela viveu.
Jovita Feitosa (de calça e saiote), a “Joana d’Arc do Brasil”
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Ana Luisa Escorel define a ficcionalidade de seu relato desde a primeira linha, que reconstrói imaginativamente um diálogo ocorrido muitos anos antes do tempo em que se desenrola a trama principal; só no citado posfácio a autora informa ao leitor que sua personagem teve existência real e a ficção baseou-se em ampla bibliografia, listada no final do volume e que permitiu uma aproximação indireta em relação a Josefa Carneiro de Mendonça e, a partir desta, a representação imaginativa. Muito antes do posfácio, porém, o leitor nota que as lembranças evocadas por Dona Josefa na reclusão macabra da cadeia colocam em cena o Brasil do século 19 e dão espessura histórica a uma mulher que lidou com as tramas do seu tempo, reagiu à onipotência do marido, reverteu regras, assumiu a frente de um confronto político duro e tentou contrapor a luminosidade resplandecente da razão às sombras do poder.
A metáfora parece óbvia: Dona Josefa e Jovita estão em lados distintos do espelho — espelho, já disse Stendhal, que se move continuamente; espelho que talvez se confine com um prisma capaz de refratar as luzes, agrupá-las e dispersá-las. É assim que, muitas vezes, a história dialoga com a ficção: são terras estrangeiras, mas fronteiriças; delimitam-se, mas são porosas uma à outra. Do encontro das duas resulta o que podemos conhecer.
A verdade de Jovita é a de uma mulher pobre, patriota e quase analfabeta, subitamente tratada como a “Joana d’Arc do Brasil” e em seguida esquecida. A verdade de Dona Josefa é a de uma mulher rica, ilustrada, politizada, acusada de liderar uma revolta e jogada na cadeia. Num mundo que recolhe as mulheres ao espaço privado, elas precisam expor a ambiguidade de suas vontades e de suas paixões; para tanto, travestem-se. Jovita finge-se de homem para ser aceita na luta; Dona Josefa assume a roupagem de liderança política — papel usual dos homens daqueles dias — e, na vida pública ou pessoal, rejeita a sombra a que relegavam as mulheres, permitindo-se ser protagonista.
A derrota das duas, no seu tempo, é inquestionável. Em desfecho previsível, após desaparecer do noticiário, coube a Jovita o destino das mulheres que não se contentavam com o espaço da casa e pretendiam a rua: tornou-se prostituta, depois amante de um engenheiro britânico; abandonada por ele, matou-se: “voluntária da morte” só dois anos depois de sonhar ser “voluntária da pátria”. Dona Josefa saiu da cadeia, de seu mundo memorial, e não tolerou a luz exagerada do sol que machucava os olhos. Pouco antes, estranhou não precisar assinar qualquer documento de soltura, ouviu que outro assinara por ela e constatou: “Filho, ou genro… Homem, de qualquer forma, como de hábito nas situações em que a lei se intromete…”.
Assinar ou falar: tarefa de homens. José Murilo nota, com argúcia, que não conseguimos ouvir a voz de Jovita: “O mutismo parece ter sido uma de suas defesas. Os jornais não registraram uma única palavra sua proferida nos dias de sua exaltação. Nem mesmo um sorriso”. Ela, que tanto queria ser sujeito, jamais deixou de ser objeto. Dona Josefa fala bastante — o que é indício mais de sua condição social do que uma possibilidade aberta às mulheres de sua época —, mas sua voz é confinada à obscuridade da cela e ouvida por um só interlocutor: espécie de memória audível, não reverbera.
José Murilo nota que não conseguimos ouvir a voz de Jovita; ela, que tanto queria ser sujeito, jamais deixou de ser objeto
Há poucos anos o nome de Jovita foi inscrito no Livro dos Heróis da Pátria. Iniciativa importante e necessária, mas que padece, como tantos gestos oficiais, da frieza da formalidade. Mais intensa e mais significativa é a percepção da complexidade e da profundidade das personagens de José Murilo de Carvalho e de Ana Luisa Escorel. Não importa, afinal, se a verdade vem da história ou da ficção, narrativas regidas por compromissos distintos e limitadores, mas que oferecem acesso ao passado. Ana Luisa atesta sua intenção de “desentranhar da ficção a sua pequena parcela de realidade”; José Murilo afirma que a Jovita “se junta o imaginário a que deu origem”. A “pequena parcela de realidade” e a combinação entre experiência histórica, imaginação e interpretação garantem que penetremos surdamente no reino da consciência de duas mulheres silenciadas e simbólicas.
Jovita Alves Feitosa e Dona Josefa são, por isso, livros essenciais: eles ressoam a vida dessas mulheres e ajudam a lembrar um tempo que persiste e insuportavelmente resiste em práticas e exclusões que, século e meio depois, ainda lemos nos jornais ou a que assistimos no nosso precário cotidiano. Também nós, assim como elas, enfrentamos paradoxos e com frequência vemos nossos anseios confinados num breve cárcere.
Matéria publicada na edição impressa #24 jul.2019 em junho de 2019.
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