História,

Jogos de guerra

A extensa oferta de livros e produtos culturais sobre a Segunda Guerra Mundial ganha um volume de peso, que atesta o fascínio do conflito

01maio2018 | Edição #11 mai.2018

“O melhor da Segunda Guerra”, me disse um amigo, “é que ela não tem fim. Para quem gosta, dá para ler sobre o assunto pelo resto da vida”. Quantos livros já foram publicados sobre o conflito? Quantos ainda são publicados, todos os anos, só no Brasil? Um público cativo torna o nicho lucrativo para as editoras.

Recentemente, clássicos como Ascensão e queda do Terceiro Reich, de William Shirer, e as Memórias da Segunda Guerra, de Winston Churchill, receberam novas edições, de luxo. Entre as novidades, destacam-se publicações que abordam a guerra por vieses inesperados: High Hitler (Planeta) expõe o uso disseminado de alucinógenos pelos nazistas; Sonhos no Terceiro Reich (Três Estrelas) revela o inconsciente dos cidadãos alemães durante a guerra e antes dela; A fortaleza de inverno (Objetiva) narra em tom sensacionalista uma sabotagem na fábrica de água pesada para impedir a construção de uma arma nuclear pelos nazistas.
 

Um tanque americano pega fogo nas proximidades de Bastogne, na Bélgica

Mas a “indústria cultural da Segunda Guerra” não se limita aos livros. Abrindo o Netflix, encontramos uma diversificada seleção de documentários, que vão desde filmes clássicos (e racistas) de Frank Capra até produções recentes de baixo orçamento e fontes questionáveis que abordam assuntos abstrusos como armas secretas e parapsicologia. 

Na ficção, Hollywood parece ter se cansado do assunto, para gáudio do cinema inglês, que sequestrou o tema criando dois filmes sobre o mesmo conflito (a retirada das tropas britânicas de Dunquerque), no mesmo ano, sob dois pontos de vista diferentes: Dunkirk, de Christopher Nolan, mostra a ação de perto, enquanto em O destino de uma nação, de Joe Wright, vemos os bastidores que levaram à operação. Ambos foram indicados ao Oscar. O Ocidente com certeza ainda não se cansou da Segunda Guerra.

O panorama ajuda a entender a publicação de A batalha das Ardenas: a cartada final de Hitler, de Antony Beevor, em robusta edição de capa dura. Beevor é uma espécie de discípulo de John Keegan, o historiador bélico que se tornou um clássico da área. Pois se há uma abordagem que fascina um público específico, é esta de Keegan e Beevor: o da estratégia militar. 

Engrenagens

Beevor não está interessado, em momento algum do livro, nos horrores do Holocausto; não cabe a ele refletir sobre antissemitismo nem sobre as bases ideológicas que permitiram a ascensão e aceitação do nacional-socialismo. A batalha das Ardenas é, sobretudo, sobre complexas engrenagens em movimento. Beevor é o engenheiro que as desmonta e mostra ao público leigo o seu funcionamento. 

(O episódio é particularmente interessante pois foi um plano tramado pelo próprio Hitler, que quase deu certo pelo fator surpresa e pela ousadia de tentar penetrar as defesas aliadas e conquistar Antuérpia; a heroica resistência americana foi retratada em toda sua brutalidade na série da HBO Irmãos de Guerra. Estima-se que por volta de 80 mil soldados morreram de cada lado, na batalha mais sangrenta de todas para os americanos.)

Veterano do Vietnã, Karl Marlantes, ao refletir sobre Tempestades de aço, um dos relatos literários mais famosos da experiência de um soldado na Primeira Guerra Mundial, conclui que Ernst Jünger, seu autor, é um “verdadeiro guerreiro”, pois jamais entra numa espiral de reflexão sobre aquilo que está fazendo, isto é, sobre toda a matança que presenciou e eventualmente ajudou a perpetrar. Jünger, um dos escritores favoritos de Hitler, não demonstra nenhum remorso ao descrever o tiro preciso que acerta na cabeça do inimigo.

Trata-se de uma visão quase antípoda de outro clássico da Primeira Guerra Mundial, Goodbye to All That, do inglês Robert Graves. Ambos foram grandes escritores, Graves e Jünger, mas um enxerga a guerra como espaço melancólico para a reflexão filosófica e poética; o outro a vê como linhas e pontos num mapa, o local onde o guerreiro por natureza se sente em casa. Entre os trechos impressionantes de Tempestades de aço está aquele que descreve o tédio absoluto que é não estar em guerra. O livro de Beevor, portanto, apela a um fetiche militarista de quem entende, em algum nível, o ponto de vista de Jünger.

Ele recria a batalha a partir de duas escalas — descendo ao nível do soldado, com anedotas de Hemingway e Salinger — e olhando tudo do alto, como um general

A Segunda Guerra Mundial foi muito mais adotada pela indústria cultural do que a Primeira, entre outros motivos porque tem heróis e vilões claramente definidos. Beevor jamais entra em questões morais. Em um momento, ensina que era mais difícil que as cirurgias tivessem bons resultados nos americanos, pois eram mais bem alimentados (e, portanto, mais gordos) que os alemães, que estavam puro osso no período final do conflito e, assim, podiam ser salvos mais facilmente com a retirada das balas. Os soldados são encarados como meras engrenagens nessa máquina horrível.

O autor supõe que todos os leitores estejam familiarizados com o estado da guerra no fim de 1944, pós-Dia D, e não oferece explicações sobre o que foi a operação Market Garden, à qual alude com frequência. Apesar disso, trata-se de um livro extremamente didático, cheio de tabelas, mapas extremamente úteis e fotos bem escolhidas. É neste sentido que o livro de Beevor se aproxima de outra apropriação da guerra pela indústria cultural — os jogos digitais. Qualquer pessoa interessada em videogames já vivenciou uma dúzia de vezes o desembarque na Normandia, seja na pele de um soldado em jogos de tiro em primeira pessoa (como Call of Duty, megaprodução que custou centenas de milhões de dólares), seja vendo tudo de longe, num mapa-múndi, em jogos de estratégia como o simulador hiper-realista Hearts of Iron. Beevor constantemente recria a batalha das Ardenas a partir dessas duas escalas — descendo ao nível do soldado, com anedotas de celebridades como Hemingway e Salinger — e olhando tudo do alto, como um general (ou um gamer) estudando as melhores estratégias.

As relações com os jogos dizem respeito também ao estilo de Beevor, sobretudo quando tem início a narração dos dias específicos da batalha. Sua escrita cinética torna as descrições empolgantes, como se o leitor assistisse a uma cena de ação. Por mais sangrento que tenha sido o combate, por mais cadáveres que tenham ficado no chão de Bastogne, a narrativa do ataque surpresa alemão e do contra-ataque dos aliados é inevitavelmente lúdica.

Nenhum ficcionista abordou tão bem a estranheza que é tornar um campo de batalha em objeto de diversão como o chileno Roberto Bolaño. Em seu romance O Terceiro Reich, publicado postumamente, conta a história de um alemão especialista em jogos de guerra de tabuleiro que busca “corrigir” os erros estratégicos dos generais nazistas e fazer o Terceiro Reich triunfar — Beevor, curiosamente, encerra A batalha das Ardenas com uma frase na qual expõe o erro que acredita ter sido fulcral nos planos de Hitler. 

Em férias num balneário espanhol, o protagonista de Bolaño encontra um inusitado adversário: um sul-americano misterioso, com o corpo todo queimado, que fica obcecado em derrotar as forças nazistas nesta batalha imaginária. A figura disforme do Queimado traz à tona o grotesco do jogo. Empregando uma constante ironia, Bolaño coloca em primeiro plano o desconforto moral inerente no fetiche por histórias de guerra.

Antony Beevor, possível cúmplice desse fascínio bélico, mostra que esta fetichização é anterior a qualquer jogo de computador ou tabuleiro. Após uma batalha, narra Beevor, “adolescentes, obcecados pela guerra, exploravam Panzers incendiados e examinavam os corpos carbonizados dentro deles. Alguns se entregavam a perigosas brincadeiras de guerra: colecionavam granadas de mão […]. Um garoto de Foy-Notre-Dame morreu brincando com um Panzerfaust que explodiu”.

E não apenas adolescentes perdidos no meio de um conflito enorme eram capazes de gamificar a guerra (para usar uma infeliz expressão que se tornou popular nos meios publicitários atuais). Em outro momento, Beevor conta dos soldados norte-americanos: “Muitos gostavam de debater qual a melhor maneira de arremessar uma granada: se era do jeito que se lança uma bola de beisebol, como no arremesso de peso ou com um giro amplo do braço. Lançar como uma bola de beisebol era rejeitado por muitos, pois podia contundir o braço e o ombro”.

O historiador Hayden White argumentou que a história, ao ser narrada, acaba assimilando a estrutura de um gênero literário — o romance, a tragédia. Beevor, assim, transformou Ardenas num livro de ação, ou melhor, num jogo de guerra.

Quem escreveu esse texto

Antônio Xerxenesky

Escritor e tradutor, é autor de As perguntas (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #11 mai.2018 em junho de 2018.