Arte e fotografia, História, Urbanismo,
Feia, suja e malvada
Paris inventada por Eric Hazan é um negativo das imagens idílicas das selfies, city tours e cartões-postais
15nov2018 | Edição #10 abri.2018De um livro que promete no título falar da “invenção de Paris” se espera uma história linear, dos acampamentos gauleses às grandes obras de vaidade dos presidentes da Quinta República, como La Défense, o bairro mais inóspito que a arquitetura já ousou fazer. Não, Eric Hazan se refere à Paris que ele inventa, o que é muito mais interessante, pois histórias da cidade há muitas. Nada de ficção, mas uma Paris montada conforme a vontade de Hazan, recriada como se pode refazer um mosaico quebrado.
Trouxe o livro na mala para as férias, pensando em usá-lo como guia. Pobre alma iludida. A primeira coisa que o autor fez foi tomar o mapa das minhas mãos e rasgá-lo (e desinstalar o meu aplicativo de localização).
Hazan é uma daquelas pessoas estranhas que se sentam ao seu lado no metrô, resmungando, e contam uma longa história, cheia de informações e com grande certeza, mas são incapazes de pôr os pensamentos em ordem. O livro é atordoante, infunde melancolia em cada pedaço da cidade, muitos mortos, um desconforto. O turista que fuja dele, pois tem uma certa raiva da Paris que encanta, aquela das selfies diante da torre Eiffel na parada do city tour. Seu percurso é a da feia, suja e malvada, o das crianças deportadas no terrível dia do arrastão do Vel d’Hiv, quando milhares de judeus foram aprisionados no velódromo e depois mandados para campos de concentração, a cidade da ocupação, da Gestapo nos hotéis de luxo.
A leitura é milimétrica — depois de descrever longamente as vissicitudes de um bairro, passa por limites invisíveis e começa a destruir o seguinte. Fronteiras que só um morador atento nota (onde acaba a Bourse e começa o Sentier, por exemplo?). O único modo de entendê-lo é a leitura como a dos grandes interventores urbanos (urbanistas não há, nem mesmo prefeito — a função surgiu em 1977, quando Jacques Chirac se tornou o primeiro alcaide eleito, com funções parecidas às do cargo no Brasil).
A cidade era tão escura que era preciso escolta para sair à noite (“a iluminação pública e a manutenção da ordem, tão importantes, quer se trate de divertir ou de vigiar e punir. Na Idade Média somente três locais eram permanentemente iluminados à noite, em Paris”). Foi Luís 14 que mandou instalar 3 mil lampiões na cidade, apesar de detestá-la (determinou que seu cortejo fúnebre serpenteasse de Versalhes até a Basílica de Saint-Denis sem penetrar os muros da capital). O Rei Sol foi o primeiro a se ocupar da cidade com um plano.
O livro é atordoante, infunde melancolia em cada pedaço da cidade, muitos mortos, um desconforto
Fui atrás dos lugares onde estava hospedado, para aproveitar a erudição histórica do autor. Ele transformou o meu bucólico apartamento nas imediações do Palais-Royal, que fica num prédio cuja placa diz “aqui morou Jean Cocteau”, este jardim oculto e protegido, num dos lugares mais fervilhantes da cidade. Em 1781, “o duque de Chartres, futuro Philippe Égalité, encarrega Victor-Louis de construir os prédios que hoje em dia emolduram o jardim pelos três lados. Com as 180 arcadas construídas, o sucesso vem imediatamente”. Esse Palais-Royal como centro mundano da Europa, cheio de clubes, de jogos, de flertes, parece remoto na pacatez que vejo da janela — dois turistas de capa de chuva que tentam não se molhar nas cadeiras verdes típicas dos parques parisienses e mais nada.
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Minha alegria por ficar um tempo no prédio de Jean Cocteau também não fica livre de uma canelada. Hazan cita muito Ernst Jünger, oficial prussiano e escritor, cujas memórias da guerra são preciosas para recuperar a época. Autor de belas páginas sobre a cidade sob a ocupação nazista, Jünger costumava jantar por ali com o embaixador de Vichy, Paul Morand, lembrando-me de que alguns grandes autores não foram totalmente antagonistas aos ocupantes.
Haussmann
O urbanista seguinte é o mais conhecido: Haussmann, incontornável quando se pensa na Paris atual. Nasce ali a metrópole dos bulevares que Proust desfrutará, saindo da sua Auteuil natal. Eu pensava que esse era o desfecho das grandes mexidas urbanísticas e que Paris estaria congelada no cartão-postal da Étoile, esticando avenidas para todos os lados, com prédios tão parecidos que é fácil se perder. Hazan me corrige: o que hoje é um aglomerado de lojas de suvenires e restaurantes chiques, o entorno da igreja de Saint-Séverin, só foi saneado em 1960.
E soma uma dupla inesperada à lista de interventores que fundaram a cidade que conhecemos. “Contrariamente a uma ideia difundida, a verdadeira erradicação da Idade Média em Paris não foi levada a cabo por Haussmann e Napoleão 3º, mas por Malraux e Pompidou, e a obra emblemática desse desaparecimento definitivo não é ‘O cisne’ de Baudelaire, mas antes ‘As coisas’ de Perec.”
A região de Les Halles é o maior problema do centro da cidade. O livro é de 2009, e Hazan não viu nem comentou o resultado, pronto só agora. La Canopée, gigantesca marquise ondulante, encalhada feito uma baleia verde, anacrônica, foi inaugurada em 2016. Encobre também lojas para turistas e um shopping de muitos andares terra abaixo. Foram anos de canteiro de obras: o velho mercado dos Halles, chamado por Zola de “o ventre de Paris”, nunca perdoou a demolição e permanece um fantasma. Nada que é feito ali dá inteiramente certo.
Paris não cresce para os lados, como Hazan explica. “Paris […] tantas vezes ameaçada, sitiada, invadida, é submetida desde a noite dos tempos às restrições de suas delimitações. Por isso, ela sempre teve uma forma regular, aparentada a um círculo, e não pôde se expandir senão por estratos sucessivos, densos e concêntricos. Da muralha de Felipe Augusto ao boulevard periférico, seis delimitações se sucederam em oito séculos.”
Sem se verticalizar (o plano de Le Corbusier para o Marais, então infecto, é o que foi construído em La Défense, afastado e extramuros, que ao longe se vê como uma Alphaville de Godard, quando o avião começa a descer no aeroporto Charles de Gaulle), ela cresce em si mesma, eventualmente numa verticalização para dentro, invertida. Os Halles são o símbolo disso. Cada escavação acha mais cacos do espelho partido de Hazan. Dois anos atrás, um reparo no encanamento de um supermercado Monoprix encontrou um cemitério.
Hazan não alcança as novas cicatrizes e renascimentos da cidade. O livro é anterior aos atentados do Bataclan e do Charlie Hebdo, ao entusiasmo da candidatura olímpica, à eleição de Macron. As camadas continuam sendo empilhadas sobre o mesmo espaço. Este é um belo livro sobre a cidade, mas é melhor lê-lo longe dela para manter a ilusão de urbe idílica, de rara beleza superficial.
Matéria publicada na edição impressa #10 abri.2018 em junho de 2018.
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JANEIRO, 2020