História,

Corações de mãe, arpões, sereias e serpentes

Livro sobre a história da tatuagem no Brasil acerta ao explicitar as relações entre o baixo social e o baixo corporal

01dez2019 | Edição #29 dez.19/jan.20

“O que há de mais profundo no homem é a pele” — a se concluir das palavras de Paul Valéry, todo tipo de inscrição estampada na superfície dos corpos deveria ser objeto de especial atenção. A começar pelas tatuagens, que nada teriam de superficial, pelo menos na acepção menor do termo. Ao contrário, elas ostentariam a rara capacidade que certas escritas têm de condensar, em fórmulas singelas e mínimas, algumas das mais candentes inquietações humanas.

Como, porém, atribuir tal profundidade a toscas inscrições de nomes próprios ou a repetidas figuras marinhas que se oferecem como matrizes do imaginário tradicional da tatuagem?

O livro da historiadora Silvana Jeha, Uma história da tatuagem no Brasil, representa uma contribuição fundamental para o entendimento da questão, ao mesmo tempo que realiza o feito de atualizá-la ao contexto social e à paisagem sensível do país. Entre os méritos do volume, que não são poucos, destaca-se o olhar atento e acurado para as intrincadas relações entre o baixo social e o baixo corporal, a perfilhar uma perspectiva pouco comum nos estudos brasileiros, que tendem a privilegiar o primeiro em detrimento do segundo.

A pesquisa abarca o período que vai do início do século 19 aos anos 1970, deixando de lado a voga da tatuagem nas últimas cinco décadas, quando esta foi, pouco a pouco, migrando para o circuito da cultura pop, do esporte e da moda. Nessa passagem, a prática da inscrição corporal acabou perdendo o valor identitário que lhe conferiam as comunidades tradicionais para se impor como manifestação da singularidade pessoal. Cabe, portanto, ressaltar o acerto da delimitação temporal do trabalho que, alinhado à história social da cultura, visa examinar as marcas visíveis da marginalidade no tecido da epiderme.

A tatuagem apareceu nas modernas sociedades ocidentais pelo fim do século 18, não por acaso coincidindo com o retorno das expedições comandadas por James Cook no Taiti. Sua expansão pelas cidades europeias e americanas deveu-se, pois, à coletividade flutuante dos marinheiros, logo ganhando adeptos entre agremiações de detentos e de soldados, estendendo-se ainda aos agrupamentos de malandros e vadios. Rejeitada pela “gente de bem” como selvageria, ao longo dos Oitocentos ela se popularizou nos meios marginais, mas restrita aos indivíduos do sexo masculino, a quem conferia uma espécie de atestado de virilidade. Só mais tarde, portanto, é que alcançou a população feminina, embora limitada quase que exclusivamente às prostitutas.     

Uma história da tatuagem no Brasil pouco difere dessa sequência de fatos, contemplando suas principais facetas, às quais acrescenta um elemento capital: as inscrições de pele dos homens e mulheres africanos que vieram escravizados para o país. Uma vez aqui instaladas, essas pessoas se distinguiam por dois tipos de marcas, sendo uma de pertencimento, a identificar suas nações de origem, e a outra de posse, a expor as torturas impostas à mercadoria humana. O pungente legado desses escravos à sociedade brasileira compõe um capítulo essencial do livro, que também examina a fundo a contribuição dos imigrantes portugueses, sírios, libaneses, japoneses, italianos e franceses a essa história.

Impossível dar conta da amplitude e da riqueza do trabalho, que investiga tantos aspectos quantas são as figuras de tatuagens que enumera no decorrer do texto. Entre elas encontram-se rosas, serpentes, cruzes, corações, rostos, águias, corpos nus, sereias, estrelas, âncoras, peixes, pássaros, cabeças de cavalo, meias-luas, facas, espadas, arabescos, chaves, pontos, nomes e frases, além de signos incompreensíveis. Mas essas inscrições, cabe assinalar, estão longe de completar o inventário examinado: a rigor, elas compõem tão somente o precioso repertório de sinais amorosos e eróticos, sobre o qual vale arriscar alguns comentários.     

Desejo

Não surpreende que, na canção “Tatuagem”, Chico Buarque de Hollanda associe a intensidade do desejo aos “corações de mãe, arpões, sereias e serpentes” vincados na pele de um amante. Afinal, como se conclui do estudo de Silvana Jeha, as inscrições corporais estão mesmo, e com grande frequência, vinculadas às paixões, sejam elas platônicas, carnais ou espirituais. A própria historiadora o certifica ao declarar que nomes e rostos de mulheres constituem, ao lado de símbolos religiosos, o maior grupo de tatuagens de suas amostras.

Sensível às relações entre religião e erotismo no país, Mário de Andrade chamou de “pornografia religiosa” alguns elementos visuais da “fantasia horripilante da maioria das tatuagens”. A observação, feita em seu romance inacabado Café, referia-se em particular ao estranho desenho que um marinheiro alemão radicado em São Paulo tatuava com frequência em seus clientes: eram “borrões irregulares, duma grafia meticulosíssima, representando chumaços de pelos” que, dependendo das figuras contíguas ou do lugar onde eram gravados, insinuavam “imoralidades que saíam eivadas de ardor religioso”. O juízo não esgotava, porém, a forte impressão causada pelas imagens no escritor, que as considerava “de interpretação obscura”, reiterando o caráter enigmático dos sinais estampados na pele.

Os signos visíveis, como sugere Mário, nem sempre estão a serviço do esclarecimento. Por isso, o reconhecimento da obscuridade segue sendo uma chave prudente e produtiva, sobretudo para se interrogar o segmento das tatuagens amorosas e eróticas, já que essas duas esferas pouco se diferenciam no imaginário em questão. Como observa a autora, “tatuar a mãe, a puta, a(o) esposa(o), a(o) irmã(o), amantes, enamoradas(os) diz respeito à polissemia do amor. Amor incondicional, passional ou erótico — amor”. Nesse campo polissêmico, todavia, as figuras da mãe e da puta ocupam lugares decididamente privilegiados, engendrando as modalidades mais recorrentes de inscrições.

Porto seguro no mar das incertezas amorosas, o coração de mãe reina soberano entre as representações do gênero, comportando pouquíssimas variantes. O mesmo não acontece com o inventário relativo às prostitutas, marcado pela diversidade. Diferença significativa que, desde o quesito da regularidade, distingue o amor permanente da paixão passageira, remetendo a uma questão de fundo que repousa na base da tatuagem: a oscilação entre o perene e o efêmero, o certo e o duvidoso, o lar e a viagem, a saudade e a aventura. Ou, para traduzir nos termos das imagens desse repertório, que não esconde a origem marítima: entre a âncora e o pássaro, ou ainda, entre a cruz e o barco.

Contrapartida perfeita do massivo coração materno cravado nos troncos e nos muques dos homens, a borboleta é um signo constante entre as putas, que geralmente o exibem nas coxas. Escusado lembrar que, no Brasil, as prostitutas atendem muitas vezes por “mariposas”, o que reforça a pecha de inconstância característica do métier. Daí que a imagem venha a aparecer por vezes na pele masculina, quase sempre associada a um nome próprio, a evocar uma experiência do amor venal guardada na memória.

Entre os diversos casos relatados no livro, um dos mais interessantes é o de Nelson Cavaquinho. Em meados do século 20, o compositor carioca ostentava no ombro direito o nome de Lígia, moradora de rua, provável meretriz e sua fiel companheira no Cabaré dos Bandidos da praça Tiradentes. Escusado dizer que paixões como essa, próprias dos outsiders sociais, interrogam o velho moralismo burguês, que insiste em dissociar amor e sexo. A tatuagem é, desse modo, um dos raros registros das formas marginais de amor no Brasil.

Geografia corporal

Assim como toda mensagem visual implica um suporte, a geografia corporal é parte integrante da imagem tatuada. O relato de um tatuador destaca que, em Santos, pelos idos dos anos 1970, “uma prostituta entrou numa loja do porto, levantou a saia e pediu um coração no bumbum”.

A historieta parece prosaica, e talvez até o seja nos dias de hoje, mas tudo indica que para o informante em questão ela guardava algo de excepcional. Não seria, então, pelo fato de que o desenho do coração, usualmente gravado nas partes mais altas dos corpos masculinos, de repente ganhava ali, no baixo-ventre de uma puta, um desconfortável rebaixamento? E isso não modificava por completo a mensagem de exaltação às mães?

Histórias semelhantes compõem o volume e, curiosamente, quase sempre encenadas por mulheres. Uma das mais instigantes é contada por João do Rio num texto incluído em A alma encantadora das ruas (1908). Tendo visitado a Casa de Detenção do Rio de Janeiro no início do século 20, o escritor dedicou parte de sua narrativa à descrição dos corpos das detentas, muitas das quais exibiam uma profusão de sinais, entre figuras e palavras. Chamou-lhe particular atenção o fato de que “as mulheres mandam marcar corações com o nome dos amantes, brigam, desmancham a tatuagem pelo processo do Madruga, e marcam o mesmo nome no pé, no calcanhar”. E por fim completa: “É a maior das ofensas: nome no calcanhar, roçando a poeira, amassado por todo o peso da mulher…”.

A história fala por si e, de certa forma, completa o sentido da tatuagem solicitada pela prostituta do porto de Santos, quiçá oposto, mas deixando evidente a importância do espaço corporal destinado à inscrição. É digno de nota, em ambos os casos, que os significados se polarizam entre o alto e o baixo corporal.

Bataille

Impossível não evocar aqui a tatuagem que Georges Bataille reproduz em O erotismo (1957), que examina a fundo as relações entre a parte mais elevada do corpo e o baixo-ventre. A imagem, proveniente de arquivos policiais franceses do século 19, mostra um homem nu, de costas, cujo dorso é coberto por desenhos; como ele está inclinado para a frente, mal se enxerga a cabeça e menos ainda o rosto, que fica fora do nosso campo de visão. O foco concentra-se nas nádegas, que, em primeiro plano, exibem uma tatuagem em forma de rosto: um olho em cada metade, o rego formando o nariz e o ânus figurando a boca, salientada ainda por grandes bigodes.

A figura condensa ideias registradas num texto de 1950, significativamente intitulado “Les Deux Visages” (Os dois rostos). Nele, o autor desenvolve a tese de que entre as extremidades da figura humana, indicadas pelo alto e pelo baixo corporal, estabelecem-se intensas relações de oposição e de correspondência, para deduzir que, “nos diversos jogos de amor, os seres humanos confirmam que têm dois rostos”. Prova disso estaria, segundo ele, na reciprocidade entre a boca e o ânus, aos quais se associam outros órgãos faciais e genitais. Bataille denomina um deles de “rosto oral” e o outro de “rosto sacral”, sendo que o segundo viria interrogar a identidade humana exatamente na fisionomia, ou seja, naquela parte do corpo onde ela sempre foi considerada inequívoca.

Contudo, na medida em que os dois rostos concentram funções próprias das extremidades, passíveis de se transferirem de um polo ao outro, eles mantêm entre si uma relação ambivalente. Presididos pelo incessante movimento de vaivém orgânico, ao qual Bataille confere particular relevância, esses polos podem adquirir aptidões complementares ou correspondentes: assim como a boca está apta a diversas atividades contraditórias, que vão do beijo ao escarro, o mesmo pode ocorrer com o ânus. Aliás, como certifica a tatuagem evocada pelo autor, o rosto formado pelos orifícios inferiores também ganha, por vezes, um alto valor de atração.

O tema é amplo e não cabe desenvolvê-lo no espaço desta resenha. Antes, interessa atentar para o fato de que as tatuagens aqui tratadas — daquela comentada pelo pensador francês àquelas estudadas pela historiadora brasileira — constituem material de notável riqueza simbólica para a elaboração das vivências corporais, não raro ocultas pelas representações idealizadas da figura humana que nos circundam. Não surpreende, pois, que tais aspectos desconcertantes ganhem evidência justamente nos corpos de homens e mulheres que, vivendo à margem do tecido social, estiveram mais distantes da norma e menos comprometidos com as supostas imagens ideais da forma humana. Mais que evidências, essas inscrições são, elas mesmas, singelas interpretações partilhadas da experiência de ter um corpo singular e contraditório, cuja pele encerra insondável profundidade.

No fim do século 19, certo Joãozinho que estava preso na Fortaleza de Santa Cruz, na baía de Guanabara, foi tatuado por um colega soldado, com a frase “Luiza, meu amor” sob um rosto de mulher. Luiza era prostituta e João, como define Silvana Jeha, era “um homem brasileiro, amante, meio soldado, meio desocupado, meio ladrão”. Depois disso, tatuou também o nome de Leonor, um emblema da República, uma sereia, duas cobras se beijando e dois peixes. Um deles ficou inacabado porque sua pena findou antes.

O moço parece não ter se importado. Afinal, para bom entendedor, meia tatuagem basta.

Quem escreveu esse texto

Eliane Robert Moraes

Crítica literária, organizou a primeira Antologia de poesia erótica brasileira (Ateliê).

Matéria publicada na edição impressa #29 dez.19/jan.20 em novembro de 2019.