História, Quadrinhos,
As imagens do mal
Dois livros ilustrados facilitam a compreensão da história de Anne Frank e a tragédia do nazismo
13nov2018 | Edição #6 out.2017Não há quem não tenha lido ou ouvido falar da história de Anne Frank. O livro se tornou um ícone da perseguição nazista aos judeus e do seu sofrimento, desde a vida nas cidades europeias, sob o antissemitismo, até o suplício dos campos de concentração.
Quando Otto Frank — pai de Anne — retornou de Auschwitz para Amsterdam, em 1945, ele descobriu ter perdido toda a família: a esposa Edith em Birkenau e as duas filhas, Margot e Anne, em Bergen-Belsen. Depois de alguém ter denunciado o esconderijo em Amsterdam, foi encontrado, em meio aos escombros, o diário onde Anne tinha descrito e refletido sobre a experiência da clandestinidade. Os amigos da família guardaram o diário e o entregaram a Otto que, surpreso, foi reconhecendo uma faceta da filha de que não tinha se dado conta: uma menina de 14 anos madura e reflexiva, cujo maior desejo era se tornar jornalista e escritora famosa.
Foi em função desse desejo que Otto decidiu publicar o diário, que se tornou um sucesso na Holanda e na Europa, tendo sido encenado e filmado, ganhando vários dos mais importantes prêmios internacionais. Em seguida, foi criada a “Casa de Anne Frank” que, até hoje, continua zelando pelo legado de Anne, realizando eventos e publicações, como o livro Anne Frank: a biografia ilustrada, escrito e ilustrado por Sid Jacobson e Ernie Colón.
Trata-se de mais uma entre tantas publicações em torno da história de Anne. O livro relata, em quadrinhos, a história que antecede a clandestinidade e a escrita do diário, a rotina no esconderijo, os outros personagens que ali viviam, as pessoas que, por quase dois anos, colaboraram para a sobrevivência das duas famílias, a prisão feita graças a algum delator e as experiências nos campos de concentração, até a morte de todos, exceto Otto. O livro prossegue a partir desse único sobrevivente e seus esforços para a publicação do diário da filha.
Por que ler mais um livro sobre este mesmo assunto, se a história já é tão conhecida e quase desgastada? Não seria uma exploração excessiva da narrativa, talvez até com finalidade mais mercadológica do que literária?
Como dito no início, trata-se de uma história icônica, que sintetiza e simboliza o sofrimento individual em face de uma perseguição histórica monstruosa, que não pode jamais ser esquecida. Ler Anne Frank é relembrar a necessidade de pensarmos o mal e sua presença na atualidade. Todos os diários de sobreviventes da Segunda Guerra, dos quais o de Anne Frank é um dos mais conhecidos, juntamente com o de Primo Levi, advertem sobre o desejo de lembrar, de impedir o inevitável esquecimento, de carimbar a marca da própria dor.
Não há nada mais construtivo para um jovem atual do que conhecer o que pode estar sentindo um jovem refugiado na Europa
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Embora haja inúmeras obras sobre o nazismo, falar sobre isso continua sendo necessário e inesgotável. Cada história de sobrevivência e de perseguição é única e merecedora de reconhecimento, porque o que está por trás de cada uma delas é uma pessoa e não uma teoria. E o mesmo pode ser dito sobre outras guerras, como a do Vietnam, e de outras perseguições, como a da ditadura brasileira, tão precariamente relembrada.
A diferença entre os livros de Anne e de Primo Levi é que este último escreveu após ter passado por Auschwitz, e Anne fez suas anotações acreditando na sobrevivência. Levi lembra do passado; Anne vislumbra o futuro. Levi é testemunha do trauma; em Anne, somos nós que o conhecemos a posteriori. Levi analisa o mal; Anne acredita no bem.
Este livro em quadrinhos é destinado ao público infantojuvenil, com idade próxima à da protagonista. Tanto a história como as ilustrações são didáticas, claras e abordadas de forma linear. Não há estilização, esforço de análise ou interpretação, mas exclusivamente o relato da história. Trata-se de um livro destinado a jovens que estão entrando em contato com esta história pela primeira vez e, neste sentido, é um processo de iniciação importante para conhecer uma parte da história do século 20.
E por que introduzir os jovens a uma realidade tão crua? Em primeiro lugar, porque Anne tinha essa idade quanto tudo aconteceu — entre treze e quinze anos. Mas, o que é mais importante, porque Anne não é uma heroína perseguida, que sofre de autopiedade. É uma garota contraditória, que detesta a mãe, faz fofocas, quer ser famosa, cola cartões-postais de artistas na parede, gosta de ursos de pelúcia e também de filosofia.
Seu diário não analisa o mal, mas se pergunta concretamente sobre a clandestinidade e sobre a perseguição inexplicável. Lê-lo é testemunhar a sensação de quem é vítima de preconceito e poucas coisas são mais atuais e necessárias. A grande diferença entre a literatura, os diários e as cartas, por um lado, e disciplinas como a filosofia ou a psicologia, por outro, é que as últimas falam sobre as coisas, enquanto as primeiras falam as coisas, fazendo o leitor senti-las por dentro. E não há nada mais construtivo para um jovem atual do que conhecer o que pode estar sentindo neste momento um jovem sírio, um jovem da cracolândia, um jovem refugiado na Europa — todos com vidas semelhantes à de Anne Frank.
E será ainda melhor, para quem não ouviu falar de Anne Frank, iniciar o processo a partir da leitura do próprio diário. O diário de Anne Frank em quadrinhos, escrito e ilustrado pelos mesmo autores de Valsa com Bashir, reproduz fielmente o texto integral do diário, acrescentando falas aos personagens ilustrados. Aqui, o desenho atua não só como ilustração do texto, mas como agente da narrativa, complementando-a com grande expressividade e flagrantes mínimos do cotidiano. Pela beleza e originalidade das ilustrações, é certamente um livro para introduzir os jovens a esta história, mas também para os adultos poderem relembrá-la.
O direito ao esquecimento é um privilégio exclusivo de quem passou pela tragédia. Nós, que não a sofremos, temos o dever e a necessidade de lembrar, ainda a única forma de minorar a chance de repeti-la.
Matéria publicada na edição impressa #6 out.2017 em junho de 2018.
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