Encontro de Leituras,
Mistério e esplendor na quibuca da Ginga
José Eduardo Agualusa revisita a corte da rainha que quase expulsou os portugueses de Angola no século 17
17maio2024À medida que subíamos, na direção do Convento de São José, ia-se-nos juntando gente, entre escravos e serviçais, soldados e marinheiros, brancos, negros e mulatos, portugueses e flamengos […] . Já os escravos saltavam, eufóricos, quando vi surgir a luz dos primeiros archotes e, logo depois, a grande liteira onde seguia a Ginga, em talha dourada, coberta por uma cortina de veludo verde que a protegia dos olhares curiosos.
O trecho aparece perto do fim de A rainha Ginga, mas a excitação da população de Luanda ao ver a quibuca (caravana) da soberana é partilhada pelo leitor desde o início do romance de José Eduardo Agualusa. Apesar de dar nome ao livro, Ginga pouco aparece na narrativa. É como se a cortina de veludo verde preservasse a aura de lenda da mulher que reinou sobre territórios que formam a atual Angola, fechando acordos políticos com sagacidade ímpar e desafiando treze governadores portugueses entre 1622 e 1663.
Não é o primeiro romance histórico do angolano Agualusa, nem a primeira vez que Ginga dá as caras em uma obra de ficção, mas decisões acertadas resultam num livro que se lê com riso, assombro, interesse e excitação.
Ela penetrou no imaginário de seus contemporâneos como governante a ser amada, temida ou ambos
A narrativa em primeira pessoa cobre as décadas de 1620 a 1640 e fica a cargo de Francisco José da Santa Cruz, padre jesuíta pernambucano enviado ao Reino do Congo. Ao saber que o governador português de então procurava um homem instruído para servir como secretário de Ginga, Francisco se oferece para o posto. O livro tem início assim que o jesuíta encontra Ginga, a irmã do então rei, Ngola Mbandi. Ela simpatiza com Francisco e o aceita como conselheiro para lidar com os portugueses, que, baseados em Luanda, buscam expandir seus domínios. À medida que o jesuíta domina o idioma da corte, o quimbundo, e a partir da ascensão de Ginga ao trono, em 1624, Francisco servirá ainda como intérprete e embaixador.
A escolha do padre como narrador ecoa relatos escritos pelos contemporâneos da rainha, em sua maioria homens do clero, cujas palavras sobreviveram ao passar dos séculos. Talvez o principal deles seja a Istorica Descrizione de’ Tre Regni Congo, Matamba ed Angola, publicado em 1687 pelo capuchinho italiano Giovanni Cavazzi da Montecuccolo, que, em 1663, deu a extrema-unção a Ginga. À essa altura, a rainha já havia se reconciliado com o catolicismo, obra de outro capuchinho, o napolitano e súdito espanhol frei Antonio da Gaeta, que também nos legou um relato, publicado cinco anos depois da morte de Ginga.
Ao Francisco deste romance cabe narrar o batismo dela, que em 1622 se tornou, aos olhos da Santa Sé, Ana de Sousa. A decisão tinha mais razão política do que espiritual, como descobre o padre. Mais notável do que o batismo, porém, é a chegada de Ginga a Luanda, enviada como embaixadora do seu irmão para uma audiência com o governador português, João Correia de Sousa. A reunião é palco de um episódio que frequentemente aparece na historiografia — e na literatura — sobre Ginga: o momento em que ela usa uma escrava sua como cadeira. Agualusa enriquece a história ao narrar um segundo encontro com a escrava, muitos anos depois, e traçar para ela uma trajetória inesperada.
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Inesperados também são os caminhos de Francisco, que se afasta não apenas da Igreja, mas da fé católica, e termina a sua história distante muitos anos do tempo de Ginga e muitos quilômetros do reino do Dongo e da Matamba, que hoje correspondem ao norte de Angola. Nascido e educado em Olinda, o jesuíta descobre em solo africano o amor e o sexo — estrada sem volta — e conhece judeus perseguidos pelos católicos portugueses e muçulmanos mais tolerantes do que os seus irmãos de fé. Quando regressa a Pernambuco como embaixador de Ginga nos idos de 1630 e encontra Olinda nas mãos dos holandeses protestantes, Francisco sente tristeza pela destruição da cidade até se dar conta de que o medo fora embora:
O Santo Ofício, em tudo achando erro, em tudo adivinhando a sombra do demo e o fedor a enxofre que o anuncia — do sangue infecto dos judeus, ciganos e negros às rezas e mezinhas dos mandingueiros —, aterroriza as sociedades e através desse terror as degrada e avilta.
Difícil não lembrar do padre Nando, do Quarup de Antonio Callado, outro padre pernambucano que se desilude com a Igreja, abandona a batina no decorrer de uma expedição geográfica (neste caso, ao Xingu) e passa por uma transformação.
Ginga já havia figurado em outro romance histórico de um escritor angolano: A gloriosa família, de Pepetela, publicado em 1997. O constante uso de excertos de documentos seiscentistas por Pepetela imprime outro tom ao livro, focado na família do título, os Van Dum, holandeses que traficavam escravos durante o breve período em que Luanda ficou sob domínio de Amsterdã — retratado nas últimas páginas de A rainha Ginga. Ela também aparece em O trono da rainha Jinga (1999), primeiro dos cinco livros que viriam a formar o Compêndio Mítico do Rio de Janeiro, de Alberto Mussa. O escritor carioca constrói uma narrativa policial vertiginosa que começa na África e termina no Brasil.
Perspectiva africana
Numa entrevista dada à época do lançamento do romance, em 2014, Agualusa lembra que o momento de escrita coincidiu com a filmagem de um longa angolano sobre Ginga (Njinga, Rainha de Angola, lançado em 2013). Na mesma época, seu amigo e escritor moçambicano Mia Couto escrevia sobre Ngungunyane, o último imperador do Estado de Gaza, que em fins do século 19 ocupava uma região considerável do que viria a ser Moçambique e resistia à colonização de Lisboa. “Talvez haja em África uma demanda comum. É uma tentativa de redescobrir o passado numa perspectiva africana. Este livro responde a uma inquietação comum ao continente (e não apenas à África de língua portuguesa)”, disse o autor.
Ginga navegou por alianças delicadas com europeus e africanos; reinou no Dongo e depois na Matamba por cerca de cinquenta anos, até morrer. Não foi a única mulher a governar terras na África, mas foi a que mais penetrou no imaginário de seus contemporâneos como governante a ser amada, temida ou ambos. Como escreve Francisco na última vez em que a viu, “ali, naquele breve instante, enquanto o sol recuperava o fôlego, parecia imune a tudo, inclusive ao próprio tempo”.
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