

Encontro de Leituras,
A tempestade da violência doméstica
Madalena Sá Fernandes arranca beleza da brutalidade para redigir o trauma e retomar o leme de sua vida
11abr2025“Uma mulher que apanhou uma vez de um homem apanhou para sempre”, escreveu Carla Madeira. E a filha de uma mulher que viveu uma relação violenta, carrega para sempre essa cicatriz? É o que vamos descobrindo em Leme, primeiro romance da portuguesa Madalena Sá Fernandes.
A narradora de Leme volta à infância, à adolescência e ao começo da vida adulta para rememorar a convivência traumática com seu padrasto, com quem passou a morar quando tinha seis anos. A protagonista não dá voltas. “Era um filho da puta. Um filho da puta que lembramos em lágrimas”, solta já na primeira página.

A partir daí, vai resgatando suas memórias, exercício que compara a abrir caixas de mudança. O exercício não é um capricho. Essa proposta de abrir caixas define a estrutura narrativa do romance, que não avança de forma linear. Ainda assim, prende o leitor, graças ao desejo de saber até aonde o padrasto pode chegar e à linguagem, uma espécie de prosa poética que arranca beleza da brutalidade.
Como em todos os lares onde há violência doméstica — e posso falar de cadeira, porque também fui vítima, ainda que em outro contexto —, a violência nem sempre surge de forma explícita. Pode ser psicológica e muito sutil e requintada, como Paulo, o padrasto, mostra em diversos episódios do livro. Metódico e extremamente organizado, detestava que a mulher ou a menina deixassem cabelos caídos do banheiro.
Os cabelos no ralo eram uma afronta. Ele gritava muito por causa disso. Uma vez, pegou nessa papa e levou-a até a mesa onde eu estava a comer. Ergueu os cabelos à minha frente, a pingarem para cima do meu prato.
Pode piorar? Obviamente. Uma manhã, ao pegar a escova de dentes cor-de-rosa, repara que estava envolta em cabelos empapados. “Ele tinha pegado nos cabelos do ralo, enrolando-os cuidadosamente à volta das cerdas.”
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A pior parte era reservada para a mãe, igualmente intimidada, agredida e insultada a plenos pulmões. À narradora, no outro lado da parede, restava negar mentalmente o que ouvia: “A minha mãe não é uma puta, a minha mãe não é uma vaca gorda, a minha mãe não é uma cabra do caralho”.
Certa vez, o padrasto, irritado com os modos da menina, que sempre colocava os cotovelos sobre a mesa, bateu-os no tampo com tanta força que quebrou um de seus braços. Ao vê-la com o gesso, sentiu remorso, mas parecia ser dela a culpa: “a ponto de ter sido eu a aproximar-me, como se fosse meu dever consolá-lo”.
O mesmo homem que insulta, agrada. Como separar o joio dos fios de cabelos?
É nesse lugar confuso, em que raiva, ressentimento e afeto se misturam, que Leme atinge o seu ponto mais alto. A autora não se rende à tentação de transformar o personagem do padrasto num vilão sem nuances. Momentos tempestuosos são entremeados por calmarias e até por momentos bons, como as caminhadas no bosque, quando Paulo guardava em seu chapéu os frutos que colhia com a enteada. Ou nas vezes em que ele consertou seu patinete, encapou com perfeição seus cadernos e improvisou, na casa de praia, um balanço.
A complexidade desse personagem ressalta uma das maiores dificuldades pela qual passa uma pessoa envolvida em uma relação abusiva. O mesmo homem que insulta, agrada. O mesmo que fragiliza, protege. Como separar o joio dos fios de cabelos? Como desmontar o mecanismo perverso que engendra num minuto carinho, no outro sadismo? E como fazer essas distinções sendo ainda uma criança?
Travessia
O dia em que a narradora aprende a nomear o que está vivendo é comovente. Ela tinha onze anos e estava na casa da avó. De repente vê, no noticiário, a imagem de uma senhora chorando. No meio das palavras, a expressão “violência doméstica”. A peça que faltava para fechar um quebra-cabeças: “Guardei esta expressão para depois contar à minha mãe, sentia urgência em dar-lhe a notícia”.
É possível que a mãe não tivesse completa consciência do que viviam, já que o abuso sistemático acaba por enevoar o senso crítico da vítima. Sem falar que, naquela época, final do anos 90, esse tipo de relação não era tão destrinchada na mídia. E, mesmo com mais consciência, talvez ela não encontrasse forças para sair do ciclo. E nem respaldo, já que chamou a polícia algumas vezes e não fizeram nada.
Aí entra outro mérito de Leme: em nenhum momento a mãe é julgada. Talvez porque a narradora conheça tão bem a perversidade do esquema ao qual ambas estavam subjugadas.
Leme ajuda o leitor também a se reconhecer. Por se desenrolar num contexto privado e envolver uma teia de relações íntimas, as histórias de violência doméstica ainda são pouco expostas. Ao ler, descobri que situações que eu vivi, como me trancar no banheiro para não ser agredida, não eram exclusivas da minha experiência.
Ao construir Leme, Madalena Sá Fernandes também orienta, organiza e instrumentaliza a travessia do outro. E aqui falo da autora porque Leme se trata de uma autoficção. Repetidas vezes, a protagonista Madalena vai se debruçar sobre a dificuldade de redigir o trauma, alçando com brilhantismo seu processo psicanalítico e artístico a outro tema central do romance.
“Nunca quis escrever um livro sobre violência doméstica. Preferia escrever uma ficção onde não existisse nenhum tipo de brutalidade.” A narradora tenta. Por anos procura abrir caixas que não sejam relacionadas a esse assunto. E descreve isso de forma belíssima.
Li uma vez que escrever é mais sobre vestirmo-nos do que sobre despirmo-nos. Que chegamos nus à página, vulneráveis, e que a partir daí vamos colocando peças de roupa, camadas e camadas que vão cobrindo e protegendo a nudez. […] Era o que planeava fazer. Mas em todas as tentativas acabei por não proteger a minha fragilidade […] Por isso, decidi escrever sobre a realidade e sobre o passado, para tentar fechar de forma dura e clara o que dói.
Não à toa, a narradora desejou, tantas vezes, que Paulo morresse. A morte carregava a ilusão de que enfim poderia tomar o leme de sua vida. Não cabe dizer como termina o romance, mas vale ressaltar a ironia do processo. A pessoa que a narradora mais deseja esquecer é justamente aquela que se torna o tema de sua obra. Pelo jeito, além de sofrer todas as feridas, é preciso atravessar a tempestade, encharcar-se para, enfim, ver o tempo abrir e se firmar de uma outra maneira.
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