

Encontro de Leituras,
O diabo a quatro
Com histórias de espanto, Gonçalo M. Tavares revela o absurdo da realidade jogando o bem e o mal no terreno do familiar
01mar2025 • Atualizado em: 27fev2025 | Edição #91 marQuem lê os livros de Gonçalo M. Tavares aceita uma condição: não será o mesmo de antes. Quem se encontra com a sua escrita encontra-se com o enigma. A linguagem é concreta, com ações definidas, e as coisas parecem claras, parecem ser o que são, e por isso, exactamente, o que não são. Ler Gonçalo é caminhar no fio da navalha. E nesse sentido, a série Mitologias é a sua mais perfeita criação. O diabo é o terceiro livro desta série e o leitor pode escolher começar por ele ou pelos anteriores.
Em um universo mitológico onde ressoam os ditados populares, lembramo-nos de Hansel e Gretel, do Flautista de Hamelin, da Capuchinho Vermelho e percebemos que contracenam com os contos de Tolstói, com Ensaio sobre a cegueira de Saramago, com os contos de Dino Buzzati, com O mestre e Margarida, de Mikhail Bulgákov. As cortinas abrem-se e vemos uma narrativa possível do século 20: as crianças Romanov, o fim dos impérios, a Primeira Guerra Mundial, os comboios para Auschwitz, os fornos da morte.

Não seria essa a mitologia do nosso tempo? Uma mistura entre os contos de fadas que ficam para trás com os seus maus, tão maus, seus bons, tão bons, esmagados pela velocidade que se tornou ela mesma uma personagem, e a nossa realidade tão surreal? Cada livro da série Mitologias é um exercício de liberdade, a extrema correspondência entre forma e conteúdo: um texto louco para falar de loucura, um texto livre para falar de liberdade, um texto absurdo para falar de absurdos.
Sentimo-nos dentro de um sonho, imagens estranhas, pessoas definidas por características grotescas
Neste início de 2025 os livros infantis têm lobos bons e bruxas fofas; Trump sobe ao poder e reclama a faixa de Gaza; Hollywood arde. Estamos, naquilo a que chamamos realidade, longe de um tipo de absurdo e tão próximos de outro. Um absurdo noticiado não é um absurdo narrado, mostram-nos estes livros. Encontramos uma frase de Walter Benjamin ao final do livro, tanta informação e “no entanto, somos cada vez mais pobres de histórias de espanto”. Que sorte para a literatura que Gonçalo aceite o desafio.
Entramos no livro e a alternância entre narração e apresentação de personagem recorda-nos o teatro com as suas cenas curtas, as suas sequências revelando sempre algo novo que nos desperta tanto o riso como a angústia. Algo que nos recorda a Kafka, e parece dizer: e a ti leitor, onde te leva o espanto?
O diabo começa como A Mulher-Sem-Cabeça e o Homem-do-Mau-Olhado (Dublinense, 2019), primeiro livro publicado da série Mitologias. Tanto à mulher como ao diabo cortaram-lhes a cabeça. Mulher e diabo: desorientados no espaço, desorientados no tempo.
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É isso mesmo que eles veem agora, finalmente da janela certa: o diabo está sem cabeça e anda em redor da casa porque está perdido, porque não sabe por onde avança. Como se fosse uma galinha — pensa Olga —, como se fosse uma galinha, o diabo, uma galinha a quem cortaram a cabeça e que mesmo assim ainda corre durante uns metros, muitos metros. Eis o diabo: cortaram-lhe a cabeça mas ele aí anda, às voltas, sem saber para onde ir.
Universo do delírio
Sentimo-nos dentro de um sonho, imagens estranhas, pessoas definidas por características grotescas, ou apenas graciosas. Os acontecimentos parecem tomar o rumo de uma catástrofe e de repente não, a palavra “subitamente” recordando-nos que estamos no universo do delírio, do devaneio. As coisas acontecem porque sim, porque estão na sua lógica própria e não temos dificuldade em aceitar isso.
Como nos sonhos, os personagens são nomeados pelo que lhes acontece. Alexandre, um dos cinco meninos, é também “O-Menino-com-as-Palas-de-Cavalo”. As coisas tornam-se aquilo que as coisas fazem. Gonçalo leva aqui ao extremo algo que já é uma marca da sua literatura: um elemento condensa a identidade, e colocamos essa nova identidade no mundo, jogamos o absurdo na realidade e vemos o que acontece. O que acontece é que a realidade se revela absurda. Só olhando as coisas tal qual elas são, despidas das nossas associações viciadas podemos deixar que elas se revelem?
A velocidade, o comboio, a máquina — como bons personagens, eles podem num momento revelar-se de uma maneira e no momento seguinte as suas características possibilitam que sejam o oposto. Percebemos assim um dos maiores temas do livro: o que é o bom e o mau. O que é o bem e o mal. E como isso se joga no terreno do familiar, com os pais e os irmãos, como isso está nas leis. “Mas não são leis, na verdade não é bem isso, são conselhos, porque o diabo gosta de dar conselhos como um bom pai.” (Temos Kant e Hannah Arendt a conversar conosco.)
Um diabo a quem cortam a cabeça, tem medo dos humanos, está de quatro e depende de quem o alimenta. O diabo é um pobre diabo.
A velocidade atravessa a Mitologia, ligada à loucura, outro dos grandes temas desta série e do nosso tempo. O que é afinal enlouquecer, é o mesmo que ser louco? Ao longo da narrativa percebemos como enlouquecer e ir a grande velocidade se relacionam. Num dos momentos mais belos de O diabo, ir a uma velocidade constante é poder crescer, ter tempo. E o tempo ganha protagonismo neste livro mais que nos anteriores. A própria experiência da leitura é mais lenta.
Este universo mitológico está mais maduro. Percebemos melhor o Gonçalo que já conhecemos. Talvez O diabo seja mais íntimo. Uma das cenas mais poderosas do livro é quando o diabo se senta à mesa, ele que “esteve sempre ali”. Temos o diabo no seio da cena familiar, ocupando o lugar da irmã Anastacia (ao longo dos livros ela vai e vem e por isso está sempre em perigo e sempre a salvo).
O familiar e o sinistro se tocam — de facto, de boas intenções está o inferno cheio
Alexandre ganha umas palas pretas, para ver só para a frente; como uma máquina que sabe o seu percurso, está treinado para ir na direção que os pais definiram. As irmãs aceitam, Alexandre sabe o caminho, o rumo. Mas ele deixa de ver para os lados e aí começa o desejo de matar.
Alexandre é o mais velho e lá vai ele com as palas em redor do crânio, palas que o impedem de olhar em volta, de ver a paisagem. Mas assim, olhando sempre em frente, não se vai distrair com acontecimentos desnecessários, vai seguir o seu caminho e apenas o seu caminho e não o dos outros, como lhe ensinou o seu Professor, que lê muito e sabe muito bem o que é bom para as crianças. Por vezes o sofrimento é indispensável para que a criança cresça, e com força, e seja, depois, alguém que sabe o seu caminho e dele nunca se desvia — esse belo cavalo.
O familiar e o sinistro se tocam — de facto, de boas intenções está o inferno cheio. Neste livro, crescer é mostrado como a obrigatoriedade de já não ser criança. Perdemos a possibilidade de crescer bem, quando nos obrigam a crescer rápido? Quem define o que é crescer?
Há mais sexualidade que nos livros anteriores, uma sexualidade impregnada de poder, de invasão, de perversa curiosidade, um voyeurismo cientifico, grupal. Com Tatiana, Olga, Maria, vemos a experiência de ser mulher explorada com empatia e coragem.
Aceitemos o convite: ler as mitologias é um exercício de olhar, e por isso de olhar de novo, com atenção. Talvez mais que nada, ler O diabo seja reler, aceitando apenas o sentido que está no texto, entrando nesse universo sem pressa de que um sentido surja.
Matéria publicada na edição impressa #91 mar em março de 2025. Com o título “O diabo a quatro ”
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